segunda-feira

relógio cor-de-rosa

foi ontem, né?
O dia das mães e tudo...

Para além da esfera dos muitos presentes que se compram e do muito que se come, outras coisas ainda vêm na cabeça dagente:

uma dessas me veio no ver de duas moças, no banco.
se tem coisa desagradável nesse mundo, é o banco!
O ar é condicionado, a luz é fria, o chão é liso.
Agente só vai lá prá encarar fila e receber notícia ruim; e prá piorar tem aquele monte de foto de gente feliz, como se passasse a manhã toda comendo margarina (pois é sabido que margarina proporciona as melhores manhãs imagináveis, como se vê nos reclames).

Pois lá, na insalubridade daquele ambiente febrilmente anti-séptico, uma mulata das mais maravilhosas envergava sua farda. Empertigada a assistir gente que dava com o nariz na porta automática.
Na sua função de segurança da agência bancária ela era toda contradições.
O kevlar do colete à-prova-bala sufocava a feminilidade que provavelmente morava ali dentro.
O coturno chumbava ao chão pezinhos tão mais afeitos à malemolência que chegava a ser cruel aprisioná-los em cadarço e couro.

Logo ao lado, mas no pólo oposto, uma mocinha muito asseada exala impaciência com as pernas cruzadinhas sobre cadeira. Do alto de seus 9 anos de idade, ela já reproduzia o que via com uma fidelidade alarmante.
Seus gestos negavam a idade. Trejeitos de trinta e tantos num corpinho de nem treze e poucos.
Era um bufar, um cruzar e descruzar de joelhos, mãos nos cabelos, tudo conforme se muito vê por aí, em muitas mulheres, mas naquela pessoinha.

As duas, em sua simulada seriedade, deixavam escapar um detalhe que desmentia toda pompa:
usavam o mesmo relógio, testemunha cor-de-rosa de uma mulher que não se permite mais desfilar.

Por descuido ou por apego, o relógio rosado delatava em ambas uma improvável cumplicidade.
A Barbie interior de cada uma, delicada, sensível e romântica, agarrava-se ao pulso delas implorando por uma brecha nesse mundo.

Por que há de ser que, em duas figuras tão díspares se ocultasse o mesmo sonho adormecido?
Não seria uma injustiça danada encarcerar o que tem de bunito nesse mundo em close e pose?

Essa época do ano amolece mesmo com o peito dagente, não sei se por isso me deu aflição aquelas duas meninas, lado a lado, oprimidas em papéis que obviamente não lhes cabia interpretar, não por incapacidade, mas por inclinação.

Houve um tempo que os homens se sentiam na constante obrigação de parecerem fortes e impassíveis, e daí discorreram os mais estúpidos eventos e traços da masculinidade.
Hoje a mulher aspira inculcar essa mesma impressão, estendendo o ridículo do universo masculino a todo o universo humano.

Banco, bancos, relógios, margarina, Barbie... será que ninguém percebe que estamos correndo na direção errada?

...ou seria eu o equivocado, num surto machista, no mau-humor de segunda-feira?

Estevão Bastos

terça-feira

é tudo f...

É assim que é e não vá dizer que não.

São raros os momentos em que o cidadão pode experimentar um pouco de fraternidade nesse mundo.
esse papo de amor ao próximo já tá jogado na mesma gaveta do "feliz natal" e do "oi, tudo bem".
Aquele canto da cabeça aonde agente acumula ritos sociais que num fazem mais tanto sentido, a não ser pela mera manutenção dos mesmos...

Um evento como o desse fim-de-semana aqui em Sampa, nos oferece a possibilidade rara de ver muita
gente
contente
simultaneamente

Ocorre o famosíssimo "efeito reveión", cujo sintoma mais nítido é uma certa fraternidade descartável em todos os corações.
Fraternus descartabilis.

O povo nas ruas, trocando sorrisos e amabilidades.
A juventude se chegando.
O mesmo assunto em cada boca.
Todo mundo na balada, e o que é mais importante, na mesma balada

Hoje uma moça veio me falar em "utilização digna dos espaços públicos" e outras com palavras complicadas...
res publica

Que seja, o bagúio é loco e faz agente esquecer umas coisas que o cenário não se cansa de nos lembrar.
As cores escondidas nas nuvens da rotina que aumentam um pouquinho nosso nível de "vontade de viver", como apontou com sabedoria um velho magrelo, habitante de outro tempo.

De resto, é aquele cinzeiro geral e agente pulando da casa
branca prá preta.
Todo mundo caçando miúdos de ódio, que ajudam a esquecer o cansaço.
Olho e olheira nem se vêem.
Tutti figli di putana

egli mi riposi

Alo, alo
responde

Alo alo
respondo

Ocês discurpa a ausência tão longa.
Andei andando com dificuldades, sabe como é, como dizia o velho sábio Tibiu Melenke:
"N'tah fass pah ngüe"

O que numa tradução não literal quer dizer:
"Tá foda prá todo mundo."

E num tá?

Sendo assim ou sendo assado, vou tentar retomar...

é, bom...
tá tocando a campainha, fica prá outra vez...

quinta-feira

Telefornica

Já acordara meia aflita.
Saiu de sandália e mini saia, depois de ter tentado uns quatro outros modelitos.

Naquela dia de sol chapado e alfinetes na cabeça, ela não encontrou o seu sossego.
Nenhuma posição lhe parecia confortável.
Ansiedade e tremedeira...

Sequer pensava (ou fingia com toda força que não pensava) no rapaz da noite anterior.
Contentou-se em arquivá-lo na gaveta dos "mais idiotas do mundo", com tantos outros pretensiosos pretendentes que já passara prá trás e outros que ainda encontraria pela frente...

À noite, não dormia. Não podia.
Tinha coceira nas tripas. Comichão morno na barriga, do lado de dentro.
O corpo implorando por seu momento, dentro.
A camisola de seda ficando apertada...


Era ainda baixa madrugada, e ela determinou que já não ia poder dormir.
Nenhuma posição lhe era confortável.
Nem água de beber, nem de banhar, de banho ou de cheiro, abrandava a brasa que ardia nela. Dentro.

Quarto fechado, janela aberta.
Inquieta na cama desgrenhada, a mão esquerda discou um número quase estranho, mas já decorado; enquanto a mão direita procurou os embaixos da camisola.

"Alô"

Um rapaz atendeu do outro lado da linha.

"Olá"

Ela trocou amenidades pelo telefone, conduzindo a conversa sem notar, enquanto mergulhava para dentro de si mesma, mal contendo o tesão que derramava em suspiros e gemidos.
Os dedos brincando de montanha-russa na virilha.

O papo foi ficando entrecortado pelo sotaque dos anjos e ela já não discernia palavras, só ouvia a voz distantemente. Respondia se podia, naquela linguagem dos amantes, que agente só sabe falar quando esquece todo o resto.

Ja reluziam as coxas, tingidas pelos fluídos primordiais que escorriam.
Chuvarada. Cascata. Enchente. Vazante. Dilúvio!
Ela explodia.

Saciou-se:
"Então tá. Beijo. Tchau."

E se desfez em sono grato...

Do outro lado, o rapaz custou a entender e custou a dormir.

Telônios, à Pê

segunda-feira

Flor da Pele

"A vida conspira."



Na certa, não era nada disso que passava na cabeça do Simão, enquanto ele amargava uma ressaca braba estiradão em uma cadeirinha de praia sobre as rachaduras da calçada.

Nada além de um domingo qualquer...



Nesse domingo, exepcionalmente, Simão poupara a vizinhança da reunião tradicional que promovia na frente de casa:

Cerveja, chinelo, casais desgastados. Frango frito, boi na brasa, música de nível baixo, volume em nível alto.



Na calçada oposta, do oitavo andar, um rapaz agradecia o silêncio, recebendo a primeira rajada de sol na cara, escancarando a janela...



Amargava uma ressaca igualmente braba, de maneira que os olhos dos dois se esbarraram, no feitio de um cumprimento. Um vendo no outro o peso da própria existência.



Esse laço fraternal se desfez tão logo ambos lembraram que não se conheciam. Voltaram a seus lugares:

Simão ativou seu radinho, e o radinho dizia: "Girassol /há teu cheiro em meu lençol"

O rapaz aspirou um perfume no próprio lençol, e o perfume não era seu, não era de girassol. Era perfume de flor: "Flor da pele".

Elias

Nascia. E mal Sabia que a vida estava ainda por vir, mesmo o espirito já tendo a carne habitado. A vida naquele ser só se despertaria dali alguns anos.
Dos zero aos sete, não se dava o trabalho de falar. Apenas comunicava-se gestualmente, mais a responder do que a indagar. Não tinha curiosidade e se tinha, não demonstrava.
Ia bem nas aulas, prestava atenção em tudo, era pacato. Porém nem CDF era, pois a lei do mínimo esforço era lei. No boletim sempre sete, nada pra mais nem pra menos.
Assim passou toda sua vida escolar. Quieto. Tinha uma paixãozinha ou outra a cada 3 anos, mas ninguém sabia: nem elas, nem suas amigas, nem seu diário, que aliás não tinha sequer nenhum rabisco a não ser seu nome: Elias Sorento.
Não gostava do nome, que diria do sobrenome então: Sorento - perfeito pra qualquer trocaldilho cretino…
Era inteligente e no fim das contas foi recompensado com um emprego à altura. Ironia do desino ou trocadalho divino, E. Sorento, consultor econômico no Rio de Janeiro, dizia aos grãfinos o que fazer para se tornarem mais grãs ainda, sempre poupando gastos, saliva e evitando a fadiga. Tinha tudo organizado entrava no horário e saia sempre um pouco mais tarde, afinal de contas era um aluno nota sete.
Um rapaz sem amores e só pudores. Não se trocava na frente do espelho e as cumprimentava com um simples e breve aperto de mão; quando muito animado, o que era raro, arriscava uma piada sem graça, porém, por ser especial de estória, cotava geralmente, uns 37% de risos. Se fosse uma piada contada a uma pessoa só, isso corresponderia a quase um sorriso meia-boca.
Numa dessas noites, início de verão, probabilidade de chuva zero e véspera de feriado, Sorento viria a dar a luz a si mesmo. A data do parto: Dia 16 de novembro de 1998, às 22: 08 de uma quinta-feira. Peso da criança: 73 Kg. Teste do pézinho: um mais aberto que o outro, unha encravada e n.o 42 no sapato.
Dez da noite em ponto, lá estava ele em um bom boteco a poucas quadras de sua quitinete no Leblon. Tomava uma cerveja e, sim, estava bem gelada.
No primeiro gole, as primeiras contrações. Sentiu algo diferente, bom. Reviu seu dia a procura de algo que tinha comido e que nao devia ter lhe caido bem, não achou nenhuma quebra de conduta. Não estava acostumado ao bem estar. Pediu então a melhor cana da casa. Tomou uma talagada e novas contrações surgiram. A luz do palco improvisado se acendeu e como não tinha paciencia pra música, Sorento fez menção de se levantar e ir direto ao caixa a fim de pagar o mais rápido possivel a conta.
Magestosamente sincronizado com seu destino, no mesmo instante, nas caixas de som soava uma breve microfonia. “Boa, noite a todos presentes.”Sem ter forças para correr e sem capacidade para elaborar nenhum cálculo, nem mesmo para pensar sobre as horas, Sorento se sentou. Mais uma cerveja pousou em sua mesa. E de pernas fechadas iniciava-se ali o trabalho de parto de um Indivíduo. Seus olhos arregalavam a cada nota entoada pela flautista e seu trio de chorinho, cada acento uma contração. A música baixou, dinâmica perfeita. “Pra quem sabe o que é amor ou pra quem tá pra descobrir ainda, essa música chama-se Samba Di Amanti’. Sete cordas e pandeiro voltaram à tona e a voz mais doce ja ouvida por um consultor, cantava um refrão, como quem sussurra um segredo ao pé do ouvido. Sorento de cara enrubescida fazia um esforço danado pra segurar os olhos cheios d`àgua, nao pode aguentar. A bolsa estorou; e para sua fortuna, toda a vida escondida atrás de nümeros e certezas, correram face a baixo numa enorme vazante.
A música foi terminando e, após uma saraivada de aplausos e assovios, vieram em fim as primeiras palvaras do Grande Elias, bem alto pra todo mundo ouvir:“Puta que o pariu!”

Lubinho

Tons mudos

Existem certas conversas que se dão, inegável, mas ninguém escuta.
Nem os conversadores nem faladores alheios.
São falas, como outras, que se dão por outros sentidos que não a audição.

Experimentamos nossos olhos. Diziam coisas.
Experimentamos os tatos. Diziam.
Experimentamos cheiros. Mais.
Gostos.

Nos gostamos, nos gastamos e gozamos.
E as palavras ficaram pequeninas. Miúdas demais para o festival que se deu entre duas carnes, que lutavam prá serem só uma de novo.

Mesmo assim, agente insistiu nessas palavrinhas, até que a madrugada azedou, a manhãzinha veio coalhando o céu e desperdiçamos a despedida com outras palavras.
Fadadas à insuficiência.
Assuntos de vento.

Telônios