quarta-feira

Fudido com "O"- Fascículo I



Tem uns dia que são foda!



Prum lado e pro outro. Tem dia que é foda, foda porque foi bom. E tem dia que é foda, foda porque agente só se fode. O dia todo.



Fim do dia.



Hoje, por exemplo, foi foda. Do segundo tipo. Tanto foi, que de tão fodido que eu tava determinei que precisava foder com alguém antes que o dia seguinte despontasse. Dar o troco no mundo.



É, aquele dia tinha sido uma bela bosta, mas não é isso que importa porque o bicho pegou, mesmo, foi à noite:



Sem grana prá pegar um bonde (só tinha uma moeda, só), resolvi bater perna até chegar não sei aonde. Aonde, onde quer que fosse, eu ia foder com alguém. Foder bunito; o suficiente prá saciar minha ira e ainda um pouco mais, que é só prá eu sentir vergonha diante do espelho do banheiro, quando viesse a manhã seguinte.
Um pé-após-outro dei de cara com uma feira, que saltou em cima de mim, subitamente, com seus cacarecos e velharias expostos na Praça da Beneca.



¡PEIXE E FREGUESIA PANELA E PASTEL JACA FRESQUINHA TEM ABACATE BARATINHO
DONA!


Se esgueirando por entre a gritaria, uma melodia protestava contra aquela massa retumbante de reclames. Entres os feirantes e comprantes, cada qual com sua espécie: rinoceromnte, tartaruga, ema, codorna, um esquilo; destacou-se o par de orelhas de um jegue, não que fosse burro, eu não saberia dizer, era um jeguinho com jeito de jeca, arrastando pelo calçadão da praça um realejo bem banguelo. Que cantava, a alma longe dissipada.Como não poderia deixar de ser, um papagaio acompanhava o burrico do realejo, fazendo aquilo que fazem os papagaios e anunciando o seguinte enunciado: "Vamo chegando minha gente, que o barato é quente. Seu futuro custa apenas um real. Aceita tique"



Apertei na palma da mão a minha moeda (era de 50 centavos, só).



"Taí!" Falei. "É disso mesmo que eu tô precisando: um futuro. E resolvi atravessar a rua, comprar meu futuro, e então eu veria quem vai foder quem nessa merda!" Uma euforia insuspeita brotou na minha cuca, sob a perspectiva de que, em breve, eu teria meu futuro. Depois era só segui-lo. Fácil como achar a entrada do labirinto, conhecendo a saída.



Ledo engano.



Fui obrigado a esperar na esquina enquanto uma vazante incessante de automóveis zunia na minha frente, cada um louco prá me arrancar um pedacinho, os bastardos. E aquela muvuca do lado de lá. E o meu futuro boiando na multidão esperando que qualquer um venha e o roube, tirando de mim meu direito inalienável (ahã..) à minha própria existência.



Finda tarde.



E eu ainda preso naquela esquina, perdido nessas bobagens metafísicas. Os carros passssssssssssando. O crânio pensando, pesando...



O canto do realejo foi minguando na medida que meu futuro se distanciava de mim, praça adentro, feira adentro. E eu naquela esquina. No movimento imenso da avenida lhe perdi. Quando juntei coragem prá meter o peito no meio da rua, só via as pontas fiapadas da orelha daquele jegue, pairando sobre mil cabeças. Mas quando alcancei a outra margem da rua, costurando entre os carros, já nada via. Quando muito, ouvia um trinado relutante, que brotava da garganta do realejo distante, cada vez mais.



Uma moeda, asfixiada, na palma.



Ok, antes eu tava puto. Agora eu fedia nervos. Muita gente, gente demais. Aquela algazarra dos diabos me estuprando os tímpanos enquanto eu tentava esticar o ouvido prá ver se achava um barulhinho, qualquer fiapo que delatasse a posição daquele jegue e do loro, guardião da minha posteridade.
Entre uma promoção de peixe podre e a queima de estoque de maçã argentina, fisguei a voz do papagaio já descendo a ladeira, em direção aos bairros baixos, a Baixaria, para onde escorrem os restos e os rejeitados quando cai a noite.



Cai a noite.



E eu naquele passo ridículo de quem não encontra dignidade o suficiente para correr nem tranquilidade que baste para simplesmente andar. Ladeira abaixo, seguindo meus ouvidos. Perseguindo o mulo e seu loro, até que os avistei dobrando uma esquina. Dobrei o passo no encalço deles e tive tempo de ver somente o calcanhar e calça jeans do burro (e o rabo, claro), entrando por uma fenda maliluminada.



Cheiro de cachaça entornada e mijada preenche o ar.



Estaco em frente à entrada: um corredor escuro e curto se estende em três degraus que sobem até um portão de grade, além do qual a escada segue. Sobe até o inferno. Do portão em diante, a penumbra azulada que cobre a noite da Baixaria dá lugar a uma luz dourada que cora as paredes e a escada, com a promessa do lenitivo definitivo para aquele que ousar galgar cada degrau.


Ousaria, eu?

A moeda rodopia no ar: coroa."Ousarei" disse.


E ousei.

Com era de se esperar, o portal se abre com a maior facilidade. Ao cruzá-lo, atravesso um véu de breu, minha existência pisca, suspensa por uma fração de segundo, eterna. Aí a radiação áurea abraça meu corpo, aquecendo meu espírito. O perfume de mil flores engrossa a atmosfera.


"E agora, panaca, vai entrar nessa espelunca sem um puto? Puteiro, por mais barato que seja, não se paga com um níquel" pensei. Mas logo dispensei esse pensamento. Afinal, eu já tinha ido até ali, atravessado o portal. Na pior das hipóteses um gorila da segurança ia me dar uma surra e me pôr prá fora do cabaré na base do pontapé. Nada além do normal.


Ledo engano. De novo.


O que rolou daí em diante, lá dentro, tá longe de normal.

Além.



...continua...
Telônios
Imagem: Portal
Foto do Ze

Um comentário:

Anônimo disse...

... vai continuá?