segunda-feira

Flor da Pele

"A vida conspira."



Na certa, não era nada disso que passava na cabeça do Simão, enquanto ele amargava uma ressaca braba estiradão em uma cadeirinha de praia sobre as rachaduras da calçada.

Nada além de um domingo qualquer...



Nesse domingo, exepcionalmente, Simão poupara a vizinhança da reunião tradicional que promovia na frente de casa:

Cerveja, chinelo, casais desgastados. Frango frito, boi na brasa, música de nível baixo, volume em nível alto.



Na calçada oposta, do oitavo andar, um rapaz agradecia o silêncio, recebendo a primeira rajada de sol na cara, escancarando a janela...



Amargava uma ressaca igualmente braba, de maneira que os olhos dos dois se esbarraram, no feitio de um cumprimento. Um vendo no outro o peso da própria existência.



Esse laço fraternal se desfez tão logo ambos lembraram que não se conheciam. Voltaram a seus lugares:

Simão ativou seu radinho, e o radinho dizia: "Girassol /há teu cheiro em meu lençol"

O rapaz aspirou um perfume no próprio lençol, e o perfume não era seu, não era de girassol. Era perfume de flor: "Flor da pele".

Elias

Nascia. E mal Sabia que a vida estava ainda por vir, mesmo o espirito já tendo a carne habitado. A vida naquele ser só se despertaria dali alguns anos.
Dos zero aos sete, não se dava o trabalho de falar. Apenas comunicava-se gestualmente, mais a responder do que a indagar. Não tinha curiosidade e se tinha, não demonstrava.
Ia bem nas aulas, prestava atenção em tudo, era pacato. Porém nem CDF era, pois a lei do mínimo esforço era lei. No boletim sempre sete, nada pra mais nem pra menos.
Assim passou toda sua vida escolar. Quieto. Tinha uma paixãozinha ou outra a cada 3 anos, mas ninguém sabia: nem elas, nem suas amigas, nem seu diário, que aliás não tinha sequer nenhum rabisco a não ser seu nome: Elias Sorento.
Não gostava do nome, que diria do sobrenome então: Sorento - perfeito pra qualquer trocaldilho cretino…
Era inteligente e no fim das contas foi recompensado com um emprego à altura. Ironia do desino ou trocadalho divino, E. Sorento, consultor econômico no Rio de Janeiro, dizia aos grãfinos o que fazer para se tornarem mais grãs ainda, sempre poupando gastos, saliva e evitando a fadiga. Tinha tudo organizado entrava no horário e saia sempre um pouco mais tarde, afinal de contas era um aluno nota sete.
Um rapaz sem amores e só pudores. Não se trocava na frente do espelho e as cumprimentava com um simples e breve aperto de mão; quando muito animado, o que era raro, arriscava uma piada sem graça, porém, por ser especial de estória, cotava geralmente, uns 37% de risos. Se fosse uma piada contada a uma pessoa só, isso corresponderia a quase um sorriso meia-boca.
Numa dessas noites, início de verão, probabilidade de chuva zero e véspera de feriado, Sorento viria a dar a luz a si mesmo. A data do parto: Dia 16 de novembro de 1998, às 22: 08 de uma quinta-feira. Peso da criança: 73 Kg. Teste do pézinho: um mais aberto que o outro, unha encravada e n.o 42 no sapato.
Dez da noite em ponto, lá estava ele em um bom boteco a poucas quadras de sua quitinete no Leblon. Tomava uma cerveja e, sim, estava bem gelada.
No primeiro gole, as primeiras contrações. Sentiu algo diferente, bom. Reviu seu dia a procura de algo que tinha comido e que nao devia ter lhe caido bem, não achou nenhuma quebra de conduta. Não estava acostumado ao bem estar. Pediu então a melhor cana da casa. Tomou uma talagada e novas contrações surgiram. A luz do palco improvisado se acendeu e como não tinha paciencia pra música, Sorento fez menção de se levantar e ir direto ao caixa a fim de pagar o mais rápido possivel a conta.
Magestosamente sincronizado com seu destino, no mesmo instante, nas caixas de som soava uma breve microfonia. “Boa, noite a todos presentes.”Sem ter forças para correr e sem capacidade para elaborar nenhum cálculo, nem mesmo para pensar sobre as horas, Sorento se sentou. Mais uma cerveja pousou em sua mesa. E de pernas fechadas iniciava-se ali o trabalho de parto de um Indivíduo. Seus olhos arregalavam a cada nota entoada pela flautista e seu trio de chorinho, cada acento uma contração. A música baixou, dinâmica perfeita. “Pra quem sabe o que é amor ou pra quem tá pra descobrir ainda, essa música chama-se Samba Di Amanti’. Sete cordas e pandeiro voltaram à tona e a voz mais doce ja ouvida por um consultor, cantava um refrão, como quem sussurra um segredo ao pé do ouvido. Sorento de cara enrubescida fazia um esforço danado pra segurar os olhos cheios d`àgua, nao pode aguentar. A bolsa estorou; e para sua fortuna, toda a vida escondida atrás de nümeros e certezas, correram face a baixo numa enorme vazante.
A música foi terminando e, após uma saraivada de aplausos e assovios, vieram em fim as primeiras palvaras do Grande Elias, bem alto pra todo mundo ouvir:“Puta que o pariu!”

Lubinho

Tons mudos

Existem certas conversas que se dão, inegável, mas ninguém escuta.
Nem os conversadores nem faladores alheios.
São falas, como outras, que se dão por outros sentidos que não a audição.

Experimentamos nossos olhos. Diziam coisas.
Experimentamos os tatos. Diziam.
Experimentamos cheiros. Mais.
Gostos.

Nos gostamos, nos gastamos e gozamos.
E as palavras ficaram pequeninas. Miúdas demais para o festival que se deu entre duas carnes, que lutavam prá serem só uma de novo.

Mesmo assim, agente insistiu nessas palavrinhas, até que a madrugada azedou, a manhãzinha veio coalhando o céu e desperdiçamos a despedida com outras palavras.
Fadadas à insuficiência.
Assuntos de vento.

Telônios

Bolachas

Tudo se deu como se fosse de uma vez, mas foram duas.

Duas noites iguais em seus termos mais elementares.



Uma noite dupla, só podia mesmo desembocar em um dia duplo. Entra uma, sai outro. Entre uma e outro, reside o problema.

Pobrema dupro!



Dois casais ocupavam o Possante:

ele e ela, eu e um contrabaixo contra mim.
O baixo roncava alto e ocupava sete oitavos do banco de trás. Me conformei com meu oitavo, moído.

Íamos, os três, deixar a moça em casa.
Fomos.

Despertei com a sogra do rapaz rebocando corpo molambento e ébrio do próprio prá fora do bólido. Sacudindo pelo colarinho, feito fantoche.
A boa senhora distribuia tabefes e bolachas a esmo. Afinei, me encolhi no banco de trás e fiz cara de trompa.
Em vão.
Quando se saciou de esbofetear o mocinho, me ofereceu também um par de sardinhas e pôs todo mundo prá dentro. Serviu biscoitos e bolachas. Cafezinho.

Proseemos manhã adentro.
A sogra do outro fez-se um doce, arependida? Envergonhada?
A visitas se envergonhando sem saber; era madrugada de noite alta afinal de contas.
Tratou-nos a pão de ló, serviu-se frios, deu conselhos e ainda insistiu:
"leva esse livro, meu filho"(emprestou, mas fez questão de pôr o próprio nome e telefone na contra-capa).

Saímos era dia alto, atrasados pro próximo compromisso...
O livro é ótimo, os dois.

Telonios

Boxster

Procurava chegar tarde, sempre.
Assim, no que chegava, o quente já estava quente.
Sabia que sempre alguém podia se levantar. Alguém sempre levantava...
Chegava junto, nunca manso.


Preferia chegar cedo.
Montava tudo e esperava.
Se fazia à vontade enquanto o circo se armava à sua volta.
Chegava manso, observando e abusando.

Cada um sabia de si e de seu lugar, mas tem hora que agente escapa dagente mesmo...

Por isso que, logo cedo, o segundo - que chegara primeiro - foi-se chegando a um pretinho básico que emoldurava uma branquinha-morena.
Formosa de nascença, presunçosa de educação, linda por inclinação e ingrata por profissão.

Ela soube ser simpática, tinha essa prática: risos, assuntos de vento.
Ele soube ser apenas sincero: assim como costumava ser.

Chegou o primeiro - não tão pouco tempo depois - , de conversível amarelo.
Mais que depressa vagou-se uma cadeira.
Ela foi exercer-se. Se prestava a ser agradável, e era.

Ele foi também, sentou num banco sem braço nem encosto e principiou o ritual. Se prestava a esquentar o baile, com caretas e ritmos.

Cada qual com sua profissão, funcionários em função.
Ela soube sair, vitoriosa, cabelos ao vento, aninhada num banco de couro.
Ele soube também, sempre soubera. Veio buscar o que buscava. Agora ia, inventando outros desejos.

Sobrou o outro. Outrora o primeiro, depois o segundo, enfim o último.
Tudo acabado, baile encerrado.

Atabaques e badulaques pesando no lombo.
O caminho de casa é longo, mas só e sozinho se chega lá...

Para Aline Rio Grande