segunda-feira

CARTA AOS VISITANTES (LEIA ISSO)

Legal, taí esse tal de blog, agora eu nem sei bem como dar prosseguimento ao barato, tudo que sei é que, de quando em quando, vai ser lançado alguma coisa aí pros povo dar uma olhada.
Você lendo, gostando ou não, faz favor de comentar (só dar uma clicada no palavra "comentário" logo ali em baixo) preu saber pelo menos se alguém tá lendo essas coisa.

Essa página aqui tem a função de publicar toda e qualquer coisa (dentro das nossas possibilidades técnicas) que nos pareça interessante (para vocês) sob o estandarte do movimento cultural urbano anônimo.

"É feia mas é uma flor
atravessou o tédio, o nojo, o ódio"

Vai daí também que, qualquer membro da comunidade que vivemos (Sampa, São Paulo,Planeta Terra...) que quiser manifestar-se, ou estourar suas espinhas na lente das câmeras, fica à vontade. Se quiser mandar qualquer material pá nóis é o seguinte:
teo.e-meio@bol.com.br

Se quiser postar direto no blog, o login é meu e-meio e a senha é 100171 (sacou a piadinha?), mas faz favô de respeitar, se não agente muda a senha e perde a piada...

unicação.com

e nas palavras imortais de Hermanus Nielsen: Abraxxas

Telônios

Mínima uma

Pra que afeto ?
Se formam o par perfeito
A Mulher Objeto
E o Homem Abjeto

Magrão

quinta-feira

Desce o Pano

Depois da calmaria, sempre vem a tempestade.
Depois da cobertura, sempre vem o recheio.
Depois da bola, sempre vem uma criança.
Depois da putaria, sempre tem um cigarrinho.

A sabedoria popular tá infestada de causas e consequencias siamesas, paridas e formadas em parelha, feijão dá em peidorreira braba, e não há quem diga que não.
Hoje, porém, não houve consolo sábio, para nosso acalanto. Se ontem fomos cinzas, que papel nos resta hoje?
Cá prá mim, só resta tirar os fiapo de jaca das frieira e esticar o pescoço prá além dessa manguaça.
Ressaca dos pés à caveira. Ressaca moral, somática, espiritual, econômica, material, e o que é pior: em escala nacional!
Anteontem fui labareda e brasa, ontem ardi em carvão até me saber em cinzas, mas e depois?
Sopraram debaixo dessa cinza, mas lá não tinha lenha prá queimar.
Um vento vadio invadiu a varanda, embalando a rede que me amparava. A segunda baforada, ainda mais agradecida, acariciou a dor daquele calo de estimação, que andava especialmente reclamão. A terceira lufada porém, espalhou as cinzas da quarta-feira porta afora. Porta Bandeira, Rainha? Só no ano que vem...
Hoje e amanhã: agente gasta o branco do dente na quina do batente.

E como dizia o poeta: começou o intervalo insuportável entre o carnaval e o ano novo.

Cancelamento de outorga

Esse papo de cair na groovera devia ter dia certo, acertado. No meio da semana fica complicado pro cidadão mediano. Esse negócio vai acabar me demitindo.
Porra! Até que não seria uma má idéia...

-Opa! bom dia, senhora chefa, como vai?
-Vou muito bem, Carlos, obrigada.
-Tá bem? É mesmo? Engraçado, sabe que não parece? A senhora está com uma cara de cú que eu tô prá ver igual!
-D...!
-Me desculpa estar sendo indiscreto, atrevido; mas e o maridão, tem comparecido?
-E...!?!
-É porque, me parece, que a senhora carece é de tomar uns bom tranco nas anca, que é prá se aprumá.
-Mi...!
-Você sacumé, mulher é foda. Se não fode direito, já dá prá pentelhar os outro sem motivo nem razão...
-T...#!?
-Se o teu patrão tá meio mole, sem interesse, de duas uma: ou tá broxa ou tá com outra, e você tá fazendo a de trouxa.
-Id...
- Olha, no seu caso, eu ia pela segunda opção...
-Oh!
-O que?
-Tá Demitiiiiiiido.

No fim das contas, tenho que respeitar a véia. Durou bem mais do que eu esperava...

quarta-feira

Terça-feira – (Yurous)

Naquela época eu costumava freqüentar o centro cultural. Sem trabalho e entediado, passava as tardes perambulando por ali, enterrado no fundo da gibiteca ou tentando entrar em alguma aula de graça. Vez ou outra, sentava numa mesa do mezanino reservado a desenhistas e jogadores de RPG e ficava ali, rabiscando alguma coisa e destilando minha antipatia por japoneses cheios de espinhas que gritavam e jogavam algum jogo estúpido de cartas na mesa ao lado. Eu gostava daquilo, de estar ali entediado naquele refúgio para aquele tipo de escória da juventude. Eu era um deles.

Foi numa Terça–feira. O sol abafado entrava sem piedade pelas janelas, sem dar chance de refúgio em lugar nenhum. E era pleno agosto. Resolvi não me deixar assar como uma merda de um frango estúpido e saí andando pelo espaço do centro cultural, sem rumo algum, mais como uma forma simbólica de resistência. Ia assim distraidamente imerso em blasfêmias mentais quando um cartaz me chamou a atenção. Um cartaz não; na verdade apenas um nome escrito nele. Era o cartaz que anunciava algum tipo de evento, do qual participaria a banda cujo nome me chamou a atenção. Eu nunca tinha escutado o som da tal banda, mas fontes relativamente seguras tinham me falado bem dela. Não, eu não lembro o nome da banda, e tive preguiça de ler do que trataria o evento, achando mais fácil ir até a sala onde estava acontecendo. E fui.

Quando cheguei, o dito evento estava pra começar. E era uma ante-sala cheia de gente em pé, conversando em grupos separados e aguardando o começo. Logo na entrada, um cara magro e muito feio me chamou a atenção: tinha a barba e o cabelo compridos e muito ensebados, com se estivesse a meses sem um bom banho. Só podia ser um cara da banda. Perguntei. Era. Legal! Tentei levar o papo adiante, quem sabe até descobrir que merda ia acontecer ali, mas ele não estava sendo nada simpático. Tudo bem, eu também não costumo ser, mas pelo menos eu tentei... Sem nenhuma resposta clara, tentei adiante. Logo me deparei com outra horrenda figura que sem muito esforço deduzi ser também da banda. Perguntei. Era. Esse seguia o visual da barba e do cabelo, mas não se parecia com um doente terminal como seu companheiro, o que não fazia dele menos feio. Era albino e pelo visto sofria de alguma mutação, porque não tinha um dos olhos, sendo que o que lhe sobrava era pequeno e amarelo. Esse cara foi um pouco mais amigável comigo, apesar de não ter conseguido me fazer entender mais do que se passava. Ele veio com um papo complicado sobre o conceito espiritual do evento enquanto eu só conseguia prestar atenção era naquela cara com aquele olho.

Começou o evento. O povo foi se aglomerando na entrada, eu fui atrás. Notei do meu lado um cara muito estranho, magricelo com uma barba bem rala, mas comprida. Aí percebi que não era um cara. É, era uma mulher. Uma mulher barbada. Argh! Fui um dos últimos a entrar e fiquei meio atrás. A sala era pequena pro número de pessoas e ainda por cima o chão tava cheio de coisas distribuídas irregularmente pelo espaço, umas mesas, uns cavaletes, sei lá. Não dava pra se mexer muito. Que merda, pensei. Nem sinal da banda. Mais merda ainda. Comecei a ficar preocupado. Eu não tava entendendo nada e todo mundo começou a discutir alguma coisa e eu não sabia o que era e nem porque todo mundo sabia o que tava acontecendo menos eu. Tentei mudar de lugar. Não dava pra fazer isso sem atrapalhar um monte de gente, então eu atrapalhei. Nessa tentativa, vi algo que me impressionou. Era a mulher mais feia que eu já tinha visto na vida. Muito alta, muito magra, com um cabelo preto escorrido na cara. Andava meio curva e tinha as mãos e os pés enormes. E um nariz enorme, um puta nariz. Na boa, era mais feia que a bruxa da Branca de Neve. Mais feia que o Joey Ramone. Fiquei com medo. E aí notei que ela tinha bigode. Um bigode bem considerável e até um pouco de barba, tipo as costeletas e no pescoço. E ela tava bem perto de mim, acho que dava pra encostar! Peguei o tortuoso caminho de volta entre as pessoas e objetos, e nisso todo mundo começou a dançar. Sei lá como, do nada, começou aquele monte de gente a dançar, sem música, cada um no seu ritmo, sem que ninguém dissesse nada. Aquilo foi demais pra mim. Fiquei muito puto e saí fora dali. Na porta, ainda vi mais duas pessoas de costas que eu achei que fossem mulheres, mas mais perto deu pra ver que as duas tinham barba, a mesma barba, pouco pêlo, mas comprida. Desviei delas (ou deles...) e saí de volta pra ante-sala. Eu sabia que ali a esquerda tinha um balcão, onde alguém ia ter que me explicar alguma coisa. Fui pra lá. Eu tava puto. Cheguei no balcão, mas nem consegui perguntar nada. Atrás dele estavam sentadas duas mulheres. As duas tinham barba. Levei um choque. Eu não agüentava mais um minuto naquele lugar esquisito do cacete. Virei pra ir embora e dei de cara com mais três mulheres que, claro, tinham barba, sendo que uma delas vinha na minha direção, rindo e falando comigo. Puta que pariu. Não ouvi. Nem pensei, só corri; corri rápido pra longe, bem longe, embora. E estava feliz por ter chegado.

Analgesia

(para ler ao som de Judas Priest)

São Paulo, 15 de janeiro de 1992.
7:45 horas

Os protestos de sua coluna germinaram com cara de quem vai longe, bem naquele ossinho internadegal de nome difícil, fim do fim dum rabo, herança do macaco. Daí percorreu a lombada da sua lomba a pontada safada, deslizou nas primeiras vértebras e seguiu espinha acima, na rabeira da medula.

Como num elevador panorâmico, Dona Dô observou com o mesmo velho espanto o vale dos intercostais, com seus brônquios e bronquíolos, os rins no jeito de uva passa, um pâncreas, o Bixiga, lá bem embaixo, quase transbordando na área de saneamento básico e nas bolas.

Da coluna vertebral à cervical, desemborcaram no crânio os protestos. Aquela pontada que nasceu no submundo da anatomia animal se multiplicou estourando num bigui bangue de alfinetes, como se fosse o peido de um porco espinho acuado e sem cú. A agonia em cada agulhada atravessando o cérebro prá (pá!) fincar seco no osso de dentro do lado de lá; por exemplo: um preguinho de dor despertado no maxilar alojaria-se no cucuruto oposto, no alto do crânio, sempre atravessando a massa cinzenta e atabalhoando, engavetando o tráfego dos neurônios ruidosos costurando pelas ligações sinápticas.
Quando o primeiro feixe de pontas finalmente lancetou sua retina Hitô abriu os olhos e se recompôs da dor de levantar.
Olhou pela janela: os deuses castigavam o mundo com sua raiva molhada. Nem bom, nem mau, nem feio; nesta manhã o Sol não nasceu para ninguém, e se o Sol não nasce como você sabe que é dia?

Lá fora, infinitas farpas reluzentes diluiam os contornos da manhã.
Será que era manhã?


Amanhã?
-Hã...
Ã-hã
Amanhã.
Amanhã eu vou...
Amanhã eu vou e resolvo tudo, mas hoje eu não vou nem fudendo!-

E assim foi. Hitô não foi trabalhar. Se tivesse ido, a estória seria muito diferente:

Desse jeito mesmo: sem menos nem mais pretensões ele iria prá aquela velha esquina, estenderia na imperfeita geometria da calçada um losângulo de lona, surrado de sujo.
Como uns muitos tantos outros dias; comuns muitos mais do que contáveis: contados.
Como esses e nesses mesmos, ele recostaria a carcaça cambaia descomposta na lona, no calçadão, naquela quadra, naquela rua.
Na Rua.
Aí era só estender um caneco –mais simbólico do que útil, mais reclame que ferramenta- e brindar àqueles que (almas caridosas!!!?) contribuíam com um trocado para a miséria do próximo, quitando mais uma mensalidade do seu seguro contra remorso (naturalmente sem carência).

Dona Dô, assistindo lá de dentro, das entranhas do bonde em lento movimento, a uma das infinitas repetições desta mesma cena -o moço, já não tão moço, manco, chegando manso, dispõe seus pertences na lona espraiada, e começa o expediente- correria certo o risco de logo sentenciar: mendigo pedinte.
Mas Dona Dô, sendo velha sabida que era, doída, doida e vivída sabia: Aquilo que Hitô fazia, no dia-após-dia, não tinha nada de mendicante, ou se tinha era mesmo só aquele tanto de mendicância que todos temos (e não temos?). Aquilo que fazia Hitô eram negócios, como um outro qualquer negócio, onde circulam déficit e superávits, e mais déficit. Câmbio monetário. Um esperto, um otário. Um oferta, outro procura. O que havia ali de diferente, simplesmente, era o teor da mercadoria: vendia-se alegria.

Dona Dô retira da bolsa de feira colorida, desbotada, um suculentoso caqui e desescancara uma mordida lascada na carne escarlate, sentindo um gominho muito sutil, quase cartilaginoso, completo sabor e satisfação. A boca se inunda, rubras cascatas larga garganta abaixo, lava doce na bochecha, lava a alma. Na segunda mordida a véia gorda surpreende a metade de um vermão saculejando a rabeta no fruto proibido. Antes de imaginar em que esquina escura estaria alojada a outra metade, meio mastigada, da sua companheira solitária, Dona Dô dispara, quase pare, aquilo tudo de caqui que por ali entrara. Num pulso liso como entrou, aquela fruta escrota cortou o ar janela afora, estirando-se violentamente no meio-fio de um beco escuro, monturo que visitou brevemente o ventre daquela infeliz agora se espraiava pelos redutos mais diversos.
No ponto seguinte Dona Dô se vê obrigada a descer do bonde que , como toda Quinta-feira, montava para voltar da feira com compras que durariam exatamente até a próxima Quinta-feira.

Indiferente a Dona Dô, à sua própria dor, Hitô comercializava aquilo que somente lhe tinha sobrado, e tinha sobrando: sua felicidade . Assim passava a vida e a rotina, sentado em um mesmo ponto, sob a fachada cruel e irônica de um Banco do País, tentando vender seu peixe. Se recebia qualquer quantia, retribuía com um sorriso, sincero, repleto. Oferecia doses de contentamento aos necessitados e com isso comprava suas camisas, coleiras, muletas. Remédios do um e do outro tipo.

Maldizendo as tantas quantas pragas que sabia, Dona Dô fez se ouvir no meio Rua, amaldiçoando vermes, frutas e quitandas de toda sorte. Distribuindo sortilégios.
Dispôs em fila indiana, ali mesmo, tudo quanto era descabimento de dizeres que ainda cabiam na sua cabeça.

Nas têmporas de Hitô retumba o trovão que anuncia lancinante procela a curto por-vir.

Latejando anátemas enquanto guindava suas compras para fora do bondinho.

O crânio, num rompante, vira um fardo. A dor se derrama sobre cada músculo. Hitô sente o corpo inundar-se em lagoa de agonia.

Pulsou o que havia de impropérios léxico-comportamentais no seu vasto repertório opróbrio enquanto despedia o condutor; tão entretida que estava com seus próprios réprobos, sendo o olho de um furacão e carruagem da moléstia, que estirou pelo chão sua carga.

Em Hitô toda mágoa fez-se física, enlameando a alma, rebulindo o sangue, sobrecarregando os nervos.

Arroz feijão desaba em cataratas de alface, uma avalanche de lanches variados carpeteiam a via pública seguida por uma nevasca de farinha de trigo, sal e açúcar que pinta de um branco sem impurezas o cenário.

Um clarão ofusca a consciência por um átimo, barra a passagem do tempo por um tempo imensurável; e o mundo se faz silencioso, praticamente lindo, pateticamente cândido.

Ergue-se alta a mão de Dona Dô, brandindo a polpa escarlate do fruto proibido que ela mesma violara. O fruto e o punho de tal maneira proporcionais que se confundiam, sangrando suco.
Desce veloz o braço e o vermelho se alastra em enxantema, maculando o alvo, que era todo o resto.
O caqui se espatifa no chão como uma rosa nas mãos da Mona Lisa.

Finda-se o tempo em que o tempo parou de passar quando Hitô sente um aperto bem perto do peito, mas dentro; mais dentro. Um pontada gelada que rodopia e trás de volta ao dia, se é que era mesmo dia.
Diante das íris dos olhos tudo se refaz em cores e águas. Garoa, pessoas. E de repente ele sabe o que fazer.

Dona Dô, exaurida, de pé no umbigo do caos que criou, viu Hitô, cambaleante –ainda mais do que o costumeiro- pendulando até um balcão onde pediu:

-Zé!
Um tiro de cachaça e dois canos. Pra já!

Hitô talagou a pinga que pousou à sua frente e empunhou sem muita familiaridade a escopeta que lhe entregavam.
Pediu outra cachaça, conferiu a munição e começou a se mover, pingente, em direção ao meio da rua.

Antes, até, dos dois pares de olhos se cruzarem, ele já teria percebido certo e bem realizado quem que era aquela, que ali se conjurava. Era sua própria dor, que por acaso estava ali de bobeira manifesta. O diabo na rua, no meio do redemuinho. A Hitô bastava que, sem jogos nem trapaças, saraivasse a cara e o corpo ali presentes. Inaugurando com um par de rosas de chumbo o jardim de sua própria vida, dali prá adiante, vazia de toda dor que rói as almas, quem sabe até talvez eterno como uma árvore?

Bastava que apertasse o gatilho, e que não tivesse estado em casa, neste dia que não amanheceu; e seria para sempre liberto da dor.

A eterna dor de estar vivo...

“Ao Grão Grelutz, o homem que anda incerto pois não sabe que pisa certo”

terça-feira

O Estado mental de mentes

Um conto de lula, mo.luz.com

A rua estava quase deserta, congelada. Meu cigarro queimava sozinho na boca criando formas estranhas na penumbra, causada por um luminoso de motel que insistia em falhar numa rítmica sistemática, quase proposital. Olhava aquele posto de gasolina, o único recinto iluminado, um Select também aberto e dois funcionários: O gordão assistia a uma televisão portátil, resmungando risos para uma porcaria que mostrava sua própria decadência geométrica do potencial de sua existência. Vê-se logo que não era capaz de entender o que assistia; O outro parecia uma coruja, de olhos arregalados e assustados, olhava em volta, sua face branco-gelo e cabelos negros, grossas sobrancelhas, movimentação rápida e impulsiva, não dizia nada há horas. Babava em seu próprio manto xadrez, que cobria seu colo. Já há tempos tinha sacado minha movimentação. Acho que, apesar de não manifestar sequer gestos, conhecia a iminência de um acontecimento me incluindo, e entendeu que o gordão nada podia fazer a respeito. Chegou a hora...Saquei minha Garrucha, uma velha Colt militar calibre 45 de 1872 e andei calmamente em direção ao posto. Atirei a bituca no chão e com um tiro certeiro, na testa, acabei com a alegria do gordo. Olhei fixamente para o branquelo, não se moveu, a não ser seus olhos, fixos nos meus, que gritavam desesperadamente perdão por qualquer coisa que pudesse ter feito. Suava muito e tremia como se estivesse numa câmara de gás. Apontei minha arma para minha própria cabeça, devagar, e ele começou a soluçar. Puxei o gatilho. “-Bang”, murmurei perto de sua sebosa face que se fazia tremer cada vez mais, já sabendo que não existia o segundo tiro. Guardei o berro e com uma cara satisfeita dei meia volta: “-Vou tomar um trago”.
Fazia uns dias que eu andava mudado. Não sei exatamente o que me aconteceu depois do acidente, mas percebi que a mudança fora drástica. Acordei no hospital sentindo fortes odores, o branco do meu leito ofendia minhas retinas e os pensamentos das pessoas pareciam expostos. Algo como estar morto. Era tudo muito claro, fácil, eu sabia o que todos em volta pensavam. Tinha olhos de garça, radar de morcego, enxergava sentimentos e sensações, movimentação. Comprovei minha mudança com o acontecimento do posto. Tudo bem, exagerei, mas aquela sensação era indescritível a olhos comuns. Era capaz de dizer tudo sobre a vida daquele branquelo: Sua infância solitária, seu pai, geneticamente melhor construído não suportava a derrota que a vida lhe proporcionara, um filho tão bobo. Muito apegado à mãe, só trepou com putas e não manifestou sua homossexualidade por medo de tentar. Fingia não saber. Apesar da cara estudiosa, convenhamos, com seus 30 e poucos anos estava trabalhando de madrugada em um posto de merda no meio-subúrbio-meio-interior de Guaiamum, sul da Grande São Paulo, o que demonstrava que não era capaz de se relacionar. Panaca, na certa. O que acontece é que agora eu estava sozinho no mundo, admirando psicoses de camarote...

O moleque do trem........................................................................................................21:44

Depois de entrar num dos vagões do fundo, um dos mais vazios, sentei o mais longe possível dos outros elementos. Em minha volta, padres pedófilos, executivos vazios, alguns ratos e alguns burros. Eis que entrou um rapaz com uma mala do tipo esportiva, magro e aparentemente com uns 14 anos. Não sei porque me chamou a atenção, mas chamou. Tinha um boné com uns rabiscos, bermuda e camiseta de moleque ligeiro. E sentou próximo de mim, mas do outro lado do vagão, de costas para os pontos. Vi que suas mãos gesticulavam sozinhas e sempre olhava para a janela atrás dele. Seu boné tinha uma marca de suor na divisa com a cabeça e seus pés não estavam em uma posição natural, mas virados para dentro. Três pontos depois, levantou e começou a vender amendoins. Era prática proibida dentro dos trens, por isso tanta cautela? Deixava saquinhos magros no joelho das pessoas. É absolutamente instintivo de alguma forma a isso, e todos reagiram. Uns manifestaram certa raiva, alguns apenas mexeram o olho, um jovem estudante despertou de sua viagem de maconha, mas um deles não reagiu. O padre, o velho padre, aquele olhar não me enganou. Vi que seu pacote de amendoim estava com o lacre rompido e que o moleque logo ganhou seus cobres e saiu do trem apressado.

O padre...........................................................................................................................21:49

Padre muito mal disfarçado. Padres não costumam cruzar as pernas. A sola desgastada demonstrava que o padre corria ou andava muito, prática indelicada para um padre de igreja. Sua barriga denunciava que era um grande apreciador dos prazeres da gula; Aquilo não era pão e vinho. Seus olhos eram misteriosos, diferentes dos tranqüilos e seguros olhos dos verdadeiros oradores. Não tinha nenhum livro ou bíblia nas mãos, nem a aura envolvida em razão. Levantei-me e pedi um pouco de seu amendoim. O padre fingiu-se surdo, porque nem sequer reagiu. Saí na próxima estação. A porta fechou, e com o trem partindo com sua fraca aceleração, percebi o padre levantar e esboçar um sorriso sarcástico; Virei-me e deixei a estação Jurubatuba para uma caminhada.

A menina.........................................................................................................................22:32

É engraçado sair nas ruas de madrugada. Tenho a impressão que o planeta está dividido irmanamente entre as pessoas que querem viver de dia, que tem um caráter específico, e as que querem viver de noite, com outro. Eu vivo nos dois apesar de ser um grande apreciador do mundo noturno. O mistério me fascina, a desconfiança faz parte de minhas atitudes mais primárias. É engraçado, mas você é percebido à noite por todos. De dia por ninguém. Mas Jurubatuba é meio pesado. E andando por ali, entre os travestis raspando suas virílias com gilete enferrujada, os garotos com aparência anciã de tanto fumar pedra, os pixadores tentando conseguir um espaço no pódio da escória, policial tirando um troco extra como segurança particular de bacana, parei a admirar uma garota de aproximadamente 9 anos, loirinha de rabo-de-cavalo, mas com uma faceta introspectiva. Ela se dirigiu a mim e começou a draguejar palavras estranhas como em outra língua. Aquela maneira de falar logo me envolveu, embora ficasse quieto, aguardando um acontecimento interessante. Percebi que tinha uma boneca velha na mão, segura com muita força. Creio que fosse sua única amiga, senão a melhor. Tinha alguma coisa escondida na meia, na parte da canela, que fazia um desenho de alto-relevo indecifrável, mas dava pra imaginar; Seus cabelos estavam recentemente penteados, e como não tinha bolsa ou coisa do gênero, percebi que saíra de casa ou do lugar que vive a pouco tempo, ou seja, noturna; percebendo a movimentação constante das mãos e o manejo circular dos lábios, entendi. Puxei um cigarro, acendi e lhe dei. Continuei minha caminhada e ela, a dela.


A coroa............................................................................................................................00:15

Perto de casa tem um café vintequatro horas agradável, em sua maior parte da noite, por não ser freqüentado por gente a fim de conversar. Acho bom que leiam seus jornais, ouçam seus radinhos de pilha ou assistam a TV que não se ouve perto do balcão. Pedi um café, um cigarro e uma caixa de fósforos, 46 paus de troco. Não tinha fósforos, então pedi a uma senhora ao meu lado. Tinha sua beleza, aparentava uns 30 anos, mas dava pra ver que suas proporções genéticas foram alteradas por alguma nova tecnologia da indústria estética.Ela aproveitou-se dos fósforos, infelizmente, para puxar um papo: “-Muito bonita suas sandálias. Combina com seu porte atlético.” Mentira. Minhas sandálias eram uma merda e eu não tinha nada de atlético. Em pouco tempo pude compreender muita coisa. É engraçado como determinadas fragilidades expõem uma pessoa mais que atitudes virtuosas. Estas pessoas são mais fáceis de interpretar. Aquelas falsas adulações me faziam crer que ela procurava uma boa noite de sexo. Seu rosto esticado e bem bronzeado, cabelo alisado, tentava me enganar, mas ela deixou escapar um detalhe. As mãos. As mãos denunciavam seus 60 e um troco. A meia-calça escura deixava claro que suas indelicadas pernas já perderam a vitalidade. Sua gesticulação ao fumar, com uma longa piteira, mostrava uma pessoa de fino trato, daquelas antigas madames frustradas pelos cafetões, e velhos ricos e suas promessas; Sua vaidade era inversamente proporcional à sua condição financeira. Sua bolsa, pequena e preta, indicava que era uma mulher decidida: Andava apenas com o indispensável; Pelo jeito que ela me olhou ao falar aquelas besteiras, com o canto de seus enormes olhos bem delineados com a maquiagem, mostrou que vivia de sua própria esperteza e experiência. Ameacei um riso pra eu mesmo, dei um bom gole no café e manifestei a resposta, já meio tonto: “-Você tem idade pra ser minha vó.” E ela respondeu: “-Boa noite, meu netinho.”. Apaguei.

O Senhor.........................................................................................................................88:88

Era engraçado, mas acordei diante do meu maior desafio. Não conseguia decifrar a psicose daquele ser que estava diante de minha fuça. Seus movimentos eram feitos de uma espontaneidade inconfundível. Suas palavras pareciam não passar pelo estágio do pensamento. Não havia espaço nem tempo para espionar seu interior. Não sei sequer dizer se não estava sendo fortemente trabalhado, desta vez, como caça.
-Gostaria muito de saber onde foi parar meu faro.- Exclamei.
-Aqui não há espaço para faro.
-E por que me fareja?
-Está em meu território amigo. Eu faço as perguntas.
Comecei a me sentir sufocado.
-Crês que lê as personalidades. Já se olhou no espelho?
-Claro.
-E o que leu?
-Um leitor.
-Bom?
-Diria que acima da média.
-Eficiente?
-Com perspectivas maiores.
-Vou buscar um chá. Um momento.
Não tardou mais de alguns minutos. Seviu-me o chá.
-Falhas?
-Não acredito nisso.
-Valor pela vida?
-Algum.
-Utilidade para a sociedade?
-A sociedade não tem salvação.
-Humildade?
-A sociedade não tem salvação?
-Sinto muito, mas cometeste pecado injustificável ao perder a humildade. Sendo assim de nada lhe servem os duplos sentidos.
Apaguei.

A garçonete.....................................................................................................................07:32

Acordei de repente, cutucado com violência por um cabo de vassoura, a cabeça latejando e sem sentir o corpo direito.
-Acorda moço. Bebeu demais. Se meu patrão te vê assim, te tira daqui a tiros. Saí do café ofendido, jamais fora julgado daquela maneira. Estava envenenado, sem dignidade, estava cego, não ouvia direito, pouco sentia meu tato e minha boca estava adormecida. Estava sem grana e sem cigarro, com os bolsos e gavetas revirados. E mais uma vez, não lembrava de porra nenhuma.

O Profeta do Asfalto – (Magrous)

- Figo, meu filho.
- Senhor?! Que fazes em meu sono?
- Não temos muito tempo Figo. Ouça-me! Venho a vós incubir-lhe de uma missão.
- Mas Senhor... eu não terminei nem o fundamental...
- Não importa! Figo, os homens se perdem cada dia mais. Distanciam-se da verdadeira razão que lhes ofertei em um mundo tão cuidadosamente elaborado. Trabalham como bestas alienadas, e não enxergam um palmo da beleza que o mundo dispõe. Está na hora de mudar este rumo.
- Mas... como posso eu, Senhor, limitada criatura sem popularidade alterar um sistema de tão enorme dimensão.
- Não me dirija perguntas! Mas te digo, deves começar por onde ecoar tua voz, darei-te força para parar as mais insolentes feras criadas pelo mal.
- Senhor, se estás a meu lado posso fazer tudo, e prometo que não vou decepcioná-lo.

No mesmo instante Figo acordou em seu barraco, e saiu pra rua disposto a cumprir sua missão.
A meia légua identificou seu primeiro alvo. Uma Igreja do Reino de Deus que fervia de fiéis abduzidos por falsas idéias de uma moral ultrapassada. Dentro da Igreja, tomou a frente para ouvir o pregador.

- Agora vamos todos fechar os olhos – dizia o pastor – Sintam a força de Deus, e permitam que Ele varra de suas almas os males acumulados. Disse o Senhor Jesus Cristo, que aqueles que o bem fizerem, aqueles que não matarem, aqueles que não trairem e oferecerem o face para seu inimigo, que no penoso e estreito caminho dos justos, aqueles que trabalham e se esgotam pelos seus, estes sim chegaram ao Reino dos céus. Para aqueles que aqui na Terra estão a explorar os justos, que vivem a esbaldarem-se pelo largo caminho, que desfrutam de riquezas e luxos, estes estarão condenados ao Inferno!

Figo não viu melhor oportunidade, subiu no altar e dominou a atenção dos fiéis:

- IRMÃOS! Eis que trago uma mensagem importante. Renunciem a estas palavras conformistas! O Reino dos Céus está longe, e o há de merecer aquele que lutar contra a exploração! Pastamos como bodes adestrados, vivemos à luz de padres que ignoram a liberdade. A missão de Deus é outra, estamos prestes a inaugurar uma nova Era, a Era do ócio! Rejeitemos a escravidão, paremos agora mesmo toda a destruição do mundo e de nossas mentes. Vocês estão me entendendo?!

As pessoas pasmaram e não acreditaram no que viam. O pastor surpreendeu-se com tamanha infâmia que lhe pareceu o ato.

- Você é um viciado? – gritou uma senhora um pouco indignada.
- Viciado? Viciado estamos todos nós. Estamos viciados no mal, em programas baratos de televisão, fornicamos em pensamento com a mulher do próximo, somos frutos da falsa liberdade, filhos bastardos da ponografia! Fugimos do tédio através de pecados, compramos celulares, comemos perús de Natal, mas somos solitários e depravados pelo nosso egoísmo, movidos pelo impulso da satisfação pessoal dos prazeres materiais! HÁ HÁ HÁ HÁ!!! Sigam-me eremitas, vamos enclausurar-nos no antro do bem!

Após longo período de espanto, o pastor se anunciou gaguejando:

- Co-co-como ousa vir uma criatura co-como esta desrespeitar a casa do Senhor?
- Falas do Senhor?! Sabes quem é o Senhor? Eu lhe direi algo sobre o Senhor, foi Ele quem me pediu que os convertesse à nova fé. Ele se revelou para mim em sonho.
- Como?! Não acredito. Como podes afirmar que Deus blasfema por tua boca?! Saia daqui! Estás possuído pelo demônio.

Os fiéis cercaram Figo e começaram a sovar-lhe. Alguns homens lho tomaram pelos braços e camisa, e começaram a arrastá-lo para fora.

- O que pensam que estão a fazer?! Isto não está de acordo com a vontade divina! Devem amar ao próximo. Seus... PAGÃOS! FARISEUS! SEUS IMBECIS!

E foi arremessado na calçada sem chance de esclarecer-se. Olhou para as ruas, todo esborrachado, e constatou que o mundo seguia igual a antes.

- Senhor, o que aconteceu? Preciso de Tua luz...

Neste instante um filete de merda caiu em sua cabeça. Viu uma pomba que o olhou nos olhos desde uma árvore, e sentiu que ela queria que a seguisse. Foi atrás dela, até que pousou num trator que esburacava o chão. “Tenho a força capaz de parar as mais insolentes feras criadas pelo mal.”

- Parem! Em nome do Senhor, parem! – gritava correndo em direção aos homens. – Parem! – e saltou dentro do buraco. – Aqui ficarei até que me ouçam. Tenho a força do desconhecido em minhas veias!!!

Sem que pudesse ser notado, o mestre de obras fez um sinal para que jogassem cimento no buraco, cobrindo o pequeno corpo de Figo. Com muito esforço ficou com o nariz e um olho pra fora, sem evitar que o cimento secasse.
“Merda! Alguém me ajuda! Senhor, como deixaste acontecer isto comigo, o profeta escolhido para a mais tortuosa missão?”
Com ínfima esperança, passou horas enterrado esperando uma ajuda dos céus. Entristecia-se com o tempo que perdia sem poder mudar o mundo, enquanto este seguia carregado de pessoas em transe levantando concreto sobre a vida que Deus criara. Sentiu vontade de chorar, mais não conseguia. A angústia lhe machucava mais que o cal que lhe queimava o corpo. “Deus, se não há mais nada que possa fazer, tire minha vida!”
Neste instante de auto piedade, eis que Figo olha para o lado, e se surpreende com uma flor, que nascera intacta e vencera a dureza da calçada.
“Senhor! Não acredito! Sabia que virias a meu socorro!”
Como era linda aquela flor. Vermelha, cuidadosamente desenhada. Só podia ser sua salvação. Que valentia por resistir a um mundo em decadência.
E no momento em que torcia a olho para poder olhar aquele milagre, uma bota de pedreiro surge esmagando a flor.
“Como?! NÃ NÃ NÃ NÃ NÃÃUN!!! O que você fez, seu desgraçado! Vai se arrepender! Morra, covarde, morra!” – e derramou-se de choro e raiva em sua alma. “Senhor, se pudesse seria esmagado em teu lugar!” Neste instante, o mesmo homem que esmagara a flor fez um sinal para outros, e Figo ficou inquieto sem enxergar o que acontecia. Quem olhava de fora, viu somente a cena cotidiana daquela parte da cidade em obras. Num curto intervalo de tempo, da tragada de uma fumaça, da repercussão de uma buzina, o que restava de Figo foi esmagado por um latão de entulhos.

segunda-feira

tipo asssim, cara, bizãrro.~

Vacuum oputz

vai que vai...