terça-feira

O Profeta do Asfalto – (Magrous)

- Figo, meu filho.
- Senhor?! Que fazes em meu sono?
- Não temos muito tempo Figo. Ouça-me! Venho a vós incubir-lhe de uma missão.
- Mas Senhor... eu não terminei nem o fundamental...
- Não importa! Figo, os homens se perdem cada dia mais. Distanciam-se da verdadeira razão que lhes ofertei em um mundo tão cuidadosamente elaborado. Trabalham como bestas alienadas, e não enxergam um palmo da beleza que o mundo dispõe. Está na hora de mudar este rumo.
- Mas... como posso eu, Senhor, limitada criatura sem popularidade alterar um sistema de tão enorme dimensão.
- Não me dirija perguntas! Mas te digo, deves começar por onde ecoar tua voz, darei-te força para parar as mais insolentes feras criadas pelo mal.
- Senhor, se estás a meu lado posso fazer tudo, e prometo que não vou decepcioná-lo.

No mesmo instante Figo acordou em seu barraco, e saiu pra rua disposto a cumprir sua missão.
A meia légua identificou seu primeiro alvo. Uma Igreja do Reino de Deus que fervia de fiéis abduzidos por falsas idéias de uma moral ultrapassada. Dentro da Igreja, tomou a frente para ouvir o pregador.

- Agora vamos todos fechar os olhos – dizia o pastor – Sintam a força de Deus, e permitam que Ele varra de suas almas os males acumulados. Disse o Senhor Jesus Cristo, que aqueles que o bem fizerem, aqueles que não matarem, aqueles que não trairem e oferecerem o face para seu inimigo, que no penoso e estreito caminho dos justos, aqueles que trabalham e se esgotam pelos seus, estes sim chegaram ao Reino dos céus. Para aqueles que aqui na Terra estão a explorar os justos, que vivem a esbaldarem-se pelo largo caminho, que desfrutam de riquezas e luxos, estes estarão condenados ao Inferno!

Figo não viu melhor oportunidade, subiu no altar e dominou a atenção dos fiéis:

- IRMÃOS! Eis que trago uma mensagem importante. Renunciem a estas palavras conformistas! O Reino dos Céus está longe, e o há de merecer aquele que lutar contra a exploração! Pastamos como bodes adestrados, vivemos à luz de padres que ignoram a liberdade. A missão de Deus é outra, estamos prestes a inaugurar uma nova Era, a Era do ócio! Rejeitemos a escravidão, paremos agora mesmo toda a destruição do mundo e de nossas mentes. Vocês estão me entendendo?!

As pessoas pasmaram e não acreditaram no que viam. O pastor surpreendeu-se com tamanha infâmia que lhe pareceu o ato.

- Você é um viciado? – gritou uma senhora um pouco indignada.
- Viciado? Viciado estamos todos nós. Estamos viciados no mal, em programas baratos de televisão, fornicamos em pensamento com a mulher do próximo, somos frutos da falsa liberdade, filhos bastardos da ponografia! Fugimos do tédio através de pecados, compramos celulares, comemos perús de Natal, mas somos solitários e depravados pelo nosso egoísmo, movidos pelo impulso da satisfação pessoal dos prazeres materiais! HÁ HÁ HÁ HÁ!!! Sigam-me eremitas, vamos enclausurar-nos no antro do bem!

Após longo período de espanto, o pastor se anunciou gaguejando:

- Co-co-como ousa vir uma criatura co-como esta desrespeitar a casa do Senhor?
- Falas do Senhor?! Sabes quem é o Senhor? Eu lhe direi algo sobre o Senhor, foi Ele quem me pediu que os convertesse à nova fé. Ele se revelou para mim em sonho.
- Como?! Não acredito. Como podes afirmar que Deus blasfema por tua boca?! Saia daqui! Estás possuído pelo demônio.

Os fiéis cercaram Figo e começaram a sovar-lhe. Alguns homens lho tomaram pelos braços e camisa, e começaram a arrastá-lo para fora.

- O que pensam que estão a fazer?! Isto não está de acordo com a vontade divina! Devem amar ao próximo. Seus... PAGÃOS! FARISEUS! SEUS IMBECIS!

E foi arremessado na calçada sem chance de esclarecer-se. Olhou para as ruas, todo esborrachado, e constatou que o mundo seguia igual a antes.

- Senhor, o que aconteceu? Preciso de Tua luz...

Neste instante um filete de merda caiu em sua cabeça. Viu uma pomba que o olhou nos olhos desde uma árvore, e sentiu que ela queria que a seguisse. Foi atrás dela, até que pousou num trator que esburacava o chão. “Tenho a força capaz de parar as mais insolentes feras criadas pelo mal.”

- Parem! Em nome do Senhor, parem! – gritava correndo em direção aos homens. – Parem! – e saltou dentro do buraco. – Aqui ficarei até que me ouçam. Tenho a força do desconhecido em minhas veias!!!

Sem que pudesse ser notado, o mestre de obras fez um sinal para que jogassem cimento no buraco, cobrindo o pequeno corpo de Figo. Com muito esforço ficou com o nariz e um olho pra fora, sem evitar que o cimento secasse.
“Merda! Alguém me ajuda! Senhor, como deixaste acontecer isto comigo, o profeta escolhido para a mais tortuosa missão?”
Com ínfima esperança, passou horas enterrado esperando uma ajuda dos céus. Entristecia-se com o tempo que perdia sem poder mudar o mundo, enquanto este seguia carregado de pessoas em transe levantando concreto sobre a vida que Deus criara. Sentiu vontade de chorar, mais não conseguia. A angústia lhe machucava mais que o cal que lhe queimava o corpo. “Deus, se não há mais nada que possa fazer, tire minha vida!”
Neste instante de auto piedade, eis que Figo olha para o lado, e se surpreende com uma flor, que nascera intacta e vencera a dureza da calçada.
“Senhor! Não acredito! Sabia que virias a meu socorro!”
Como era linda aquela flor. Vermelha, cuidadosamente desenhada. Só podia ser sua salvação. Que valentia por resistir a um mundo em decadência.
E no momento em que torcia a olho para poder olhar aquele milagre, uma bota de pedreiro surge esmagando a flor.
“Como?! NÃ NÃ NÃ NÃ NÃÃUN!!! O que você fez, seu desgraçado! Vai se arrepender! Morra, covarde, morra!” – e derramou-se de choro e raiva em sua alma. “Senhor, se pudesse seria esmagado em teu lugar!” Neste instante, o mesmo homem que esmagara a flor fez um sinal para outros, e Figo ficou inquieto sem enxergar o que acontecia. Quem olhava de fora, viu somente a cena cotidiana daquela parte da cidade em obras. Num curto intervalo de tempo, da tragada de uma fumaça, da repercussão de uma buzina, o que restava de Figo foi esmagado por um latão de entulhos.

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