terça-feira

O Estado mental de mentes

Um conto de lula, mo.luz.com

A rua estava quase deserta, congelada. Meu cigarro queimava sozinho na boca criando formas estranhas na penumbra, causada por um luminoso de motel que insistia em falhar numa rítmica sistemática, quase proposital. Olhava aquele posto de gasolina, o único recinto iluminado, um Select também aberto e dois funcionários: O gordão assistia a uma televisão portátil, resmungando risos para uma porcaria que mostrava sua própria decadência geométrica do potencial de sua existência. Vê-se logo que não era capaz de entender o que assistia; O outro parecia uma coruja, de olhos arregalados e assustados, olhava em volta, sua face branco-gelo e cabelos negros, grossas sobrancelhas, movimentação rápida e impulsiva, não dizia nada há horas. Babava em seu próprio manto xadrez, que cobria seu colo. Já há tempos tinha sacado minha movimentação. Acho que, apesar de não manifestar sequer gestos, conhecia a iminência de um acontecimento me incluindo, e entendeu que o gordão nada podia fazer a respeito. Chegou a hora...Saquei minha Garrucha, uma velha Colt militar calibre 45 de 1872 e andei calmamente em direção ao posto. Atirei a bituca no chão e com um tiro certeiro, na testa, acabei com a alegria do gordo. Olhei fixamente para o branquelo, não se moveu, a não ser seus olhos, fixos nos meus, que gritavam desesperadamente perdão por qualquer coisa que pudesse ter feito. Suava muito e tremia como se estivesse numa câmara de gás. Apontei minha arma para minha própria cabeça, devagar, e ele começou a soluçar. Puxei o gatilho. “-Bang”, murmurei perto de sua sebosa face que se fazia tremer cada vez mais, já sabendo que não existia o segundo tiro. Guardei o berro e com uma cara satisfeita dei meia volta: “-Vou tomar um trago”.
Fazia uns dias que eu andava mudado. Não sei exatamente o que me aconteceu depois do acidente, mas percebi que a mudança fora drástica. Acordei no hospital sentindo fortes odores, o branco do meu leito ofendia minhas retinas e os pensamentos das pessoas pareciam expostos. Algo como estar morto. Era tudo muito claro, fácil, eu sabia o que todos em volta pensavam. Tinha olhos de garça, radar de morcego, enxergava sentimentos e sensações, movimentação. Comprovei minha mudança com o acontecimento do posto. Tudo bem, exagerei, mas aquela sensação era indescritível a olhos comuns. Era capaz de dizer tudo sobre a vida daquele branquelo: Sua infância solitária, seu pai, geneticamente melhor construído não suportava a derrota que a vida lhe proporcionara, um filho tão bobo. Muito apegado à mãe, só trepou com putas e não manifestou sua homossexualidade por medo de tentar. Fingia não saber. Apesar da cara estudiosa, convenhamos, com seus 30 e poucos anos estava trabalhando de madrugada em um posto de merda no meio-subúrbio-meio-interior de Guaiamum, sul da Grande São Paulo, o que demonstrava que não era capaz de se relacionar. Panaca, na certa. O que acontece é que agora eu estava sozinho no mundo, admirando psicoses de camarote...

O moleque do trem........................................................................................................21:44

Depois de entrar num dos vagões do fundo, um dos mais vazios, sentei o mais longe possível dos outros elementos. Em minha volta, padres pedófilos, executivos vazios, alguns ratos e alguns burros. Eis que entrou um rapaz com uma mala do tipo esportiva, magro e aparentemente com uns 14 anos. Não sei porque me chamou a atenção, mas chamou. Tinha um boné com uns rabiscos, bermuda e camiseta de moleque ligeiro. E sentou próximo de mim, mas do outro lado do vagão, de costas para os pontos. Vi que suas mãos gesticulavam sozinhas e sempre olhava para a janela atrás dele. Seu boné tinha uma marca de suor na divisa com a cabeça e seus pés não estavam em uma posição natural, mas virados para dentro. Três pontos depois, levantou e começou a vender amendoins. Era prática proibida dentro dos trens, por isso tanta cautela? Deixava saquinhos magros no joelho das pessoas. É absolutamente instintivo de alguma forma a isso, e todos reagiram. Uns manifestaram certa raiva, alguns apenas mexeram o olho, um jovem estudante despertou de sua viagem de maconha, mas um deles não reagiu. O padre, o velho padre, aquele olhar não me enganou. Vi que seu pacote de amendoim estava com o lacre rompido e que o moleque logo ganhou seus cobres e saiu do trem apressado.

O padre...........................................................................................................................21:49

Padre muito mal disfarçado. Padres não costumam cruzar as pernas. A sola desgastada demonstrava que o padre corria ou andava muito, prática indelicada para um padre de igreja. Sua barriga denunciava que era um grande apreciador dos prazeres da gula; Aquilo não era pão e vinho. Seus olhos eram misteriosos, diferentes dos tranqüilos e seguros olhos dos verdadeiros oradores. Não tinha nenhum livro ou bíblia nas mãos, nem a aura envolvida em razão. Levantei-me e pedi um pouco de seu amendoim. O padre fingiu-se surdo, porque nem sequer reagiu. Saí na próxima estação. A porta fechou, e com o trem partindo com sua fraca aceleração, percebi o padre levantar e esboçar um sorriso sarcástico; Virei-me e deixei a estação Jurubatuba para uma caminhada.

A menina.........................................................................................................................22:32

É engraçado sair nas ruas de madrugada. Tenho a impressão que o planeta está dividido irmanamente entre as pessoas que querem viver de dia, que tem um caráter específico, e as que querem viver de noite, com outro. Eu vivo nos dois apesar de ser um grande apreciador do mundo noturno. O mistério me fascina, a desconfiança faz parte de minhas atitudes mais primárias. É engraçado, mas você é percebido à noite por todos. De dia por ninguém. Mas Jurubatuba é meio pesado. E andando por ali, entre os travestis raspando suas virílias com gilete enferrujada, os garotos com aparência anciã de tanto fumar pedra, os pixadores tentando conseguir um espaço no pódio da escória, policial tirando um troco extra como segurança particular de bacana, parei a admirar uma garota de aproximadamente 9 anos, loirinha de rabo-de-cavalo, mas com uma faceta introspectiva. Ela se dirigiu a mim e começou a draguejar palavras estranhas como em outra língua. Aquela maneira de falar logo me envolveu, embora ficasse quieto, aguardando um acontecimento interessante. Percebi que tinha uma boneca velha na mão, segura com muita força. Creio que fosse sua única amiga, senão a melhor. Tinha alguma coisa escondida na meia, na parte da canela, que fazia um desenho de alto-relevo indecifrável, mas dava pra imaginar; Seus cabelos estavam recentemente penteados, e como não tinha bolsa ou coisa do gênero, percebi que saíra de casa ou do lugar que vive a pouco tempo, ou seja, noturna; percebendo a movimentação constante das mãos e o manejo circular dos lábios, entendi. Puxei um cigarro, acendi e lhe dei. Continuei minha caminhada e ela, a dela.


A coroa............................................................................................................................00:15

Perto de casa tem um café vintequatro horas agradável, em sua maior parte da noite, por não ser freqüentado por gente a fim de conversar. Acho bom que leiam seus jornais, ouçam seus radinhos de pilha ou assistam a TV que não se ouve perto do balcão. Pedi um café, um cigarro e uma caixa de fósforos, 46 paus de troco. Não tinha fósforos, então pedi a uma senhora ao meu lado. Tinha sua beleza, aparentava uns 30 anos, mas dava pra ver que suas proporções genéticas foram alteradas por alguma nova tecnologia da indústria estética.Ela aproveitou-se dos fósforos, infelizmente, para puxar um papo: “-Muito bonita suas sandálias. Combina com seu porte atlético.” Mentira. Minhas sandálias eram uma merda e eu não tinha nada de atlético. Em pouco tempo pude compreender muita coisa. É engraçado como determinadas fragilidades expõem uma pessoa mais que atitudes virtuosas. Estas pessoas são mais fáceis de interpretar. Aquelas falsas adulações me faziam crer que ela procurava uma boa noite de sexo. Seu rosto esticado e bem bronzeado, cabelo alisado, tentava me enganar, mas ela deixou escapar um detalhe. As mãos. As mãos denunciavam seus 60 e um troco. A meia-calça escura deixava claro que suas indelicadas pernas já perderam a vitalidade. Sua gesticulação ao fumar, com uma longa piteira, mostrava uma pessoa de fino trato, daquelas antigas madames frustradas pelos cafetões, e velhos ricos e suas promessas; Sua vaidade era inversamente proporcional à sua condição financeira. Sua bolsa, pequena e preta, indicava que era uma mulher decidida: Andava apenas com o indispensável; Pelo jeito que ela me olhou ao falar aquelas besteiras, com o canto de seus enormes olhos bem delineados com a maquiagem, mostrou que vivia de sua própria esperteza e experiência. Ameacei um riso pra eu mesmo, dei um bom gole no café e manifestei a resposta, já meio tonto: “-Você tem idade pra ser minha vó.” E ela respondeu: “-Boa noite, meu netinho.”. Apaguei.

O Senhor.........................................................................................................................88:88

Era engraçado, mas acordei diante do meu maior desafio. Não conseguia decifrar a psicose daquele ser que estava diante de minha fuça. Seus movimentos eram feitos de uma espontaneidade inconfundível. Suas palavras pareciam não passar pelo estágio do pensamento. Não havia espaço nem tempo para espionar seu interior. Não sei sequer dizer se não estava sendo fortemente trabalhado, desta vez, como caça.
-Gostaria muito de saber onde foi parar meu faro.- Exclamei.
-Aqui não há espaço para faro.
-E por que me fareja?
-Está em meu território amigo. Eu faço as perguntas.
Comecei a me sentir sufocado.
-Crês que lê as personalidades. Já se olhou no espelho?
-Claro.
-E o que leu?
-Um leitor.
-Bom?
-Diria que acima da média.
-Eficiente?
-Com perspectivas maiores.
-Vou buscar um chá. Um momento.
Não tardou mais de alguns minutos. Seviu-me o chá.
-Falhas?
-Não acredito nisso.
-Valor pela vida?
-Algum.
-Utilidade para a sociedade?
-A sociedade não tem salvação.
-Humildade?
-A sociedade não tem salvação?
-Sinto muito, mas cometeste pecado injustificável ao perder a humildade. Sendo assim de nada lhe servem os duplos sentidos.
Apaguei.

A garçonete.....................................................................................................................07:32

Acordei de repente, cutucado com violência por um cabo de vassoura, a cabeça latejando e sem sentir o corpo direito.
-Acorda moço. Bebeu demais. Se meu patrão te vê assim, te tira daqui a tiros. Saí do café ofendido, jamais fora julgado daquela maneira. Estava envenenado, sem dignidade, estava cego, não ouvia direito, pouco sentia meu tato e minha boca estava adormecida. Estava sem grana e sem cigarro, com os bolsos e gavetas revirados. E mais uma vez, não lembrava de porra nenhuma.

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