quarta-feira

Analgesia

(para ler ao som de Judas Priest)

São Paulo, 15 de janeiro de 1992.
7:45 horas

Os protestos de sua coluna germinaram com cara de quem vai longe, bem naquele ossinho internadegal de nome difícil, fim do fim dum rabo, herança do macaco. Daí percorreu a lombada da sua lomba a pontada safada, deslizou nas primeiras vértebras e seguiu espinha acima, na rabeira da medula.

Como num elevador panorâmico, Dona Dô observou com o mesmo velho espanto o vale dos intercostais, com seus brônquios e bronquíolos, os rins no jeito de uva passa, um pâncreas, o Bixiga, lá bem embaixo, quase transbordando na área de saneamento básico e nas bolas.

Da coluna vertebral à cervical, desemborcaram no crânio os protestos. Aquela pontada que nasceu no submundo da anatomia animal se multiplicou estourando num bigui bangue de alfinetes, como se fosse o peido de um porco espinho acuado e sem cú. A agonia em cada agulhada atravessando o cérebro prá (pá!) fincar seco no osso de dentro do lado de lá; por exemplo: um preguinho de dor despertado no maxilar alojaria-se no cucuruto oposto, no alto do crânio, sempre atravessando a massa cinzenta e atabalhoando, engavetando o tráfego dos neurônios ruidosos costurando pelas ligações sinápticas.
Quando o primeiro feixe de pontas finalmente lancetou sua retina Hitô abriu os olhos e se recompôs da dor de levantar.
Olhou pela janela: os deuses castigavam o mundo com sua raiva molhada. Nem bom, nem mau, nem feio; nesta manhã o Sol não nasceu para ninguém, e se o Sol não nasce como você sabe que é dia?

Lá fora, infinitas farpas reluzentes diluiam os contornos da manhã.
Será que era manhã?


Amanhã?
-Hã...
Ã-hã
Amanhã.
Amanhã eu vou...
Amanhã eu vou e resolvo tudo, mas hoje eu não vou nem fudendo!-

E assim foi. Hitô não foi trabalhar. Se tivesse ido, a estória seria muito diferente:

Desse jeito mesmo: sem menos nem mais pretensões ele iria prá aquela velha esquina, estenderia na imperfeita geometria da calçada um losângulo de lona, surrado de sujo.
Como uns muitos tantos outros dias; comuns muitos mais do que contáveis: contados.
Como esses e nesses mesmos, ele recostaria a carcaça cambaia descomposta na lona, no calçadão, naquela quadra, naquela rua.
Na Rua.
Aí era só estender um caneco –mais simbólico do que útil, mais reclame que ferramenta- e brindar àqueles que (almas caridosas!!!?) contribuíam com um trocado para a miséria do próximo, quitando mais uma mensalidade do seu seguro contra remorso (naturalmente sem carência).

Dona Dô, assistindo lá de dentro, das entranhas do bonde em lento movimento, a uma das infinitas repetições desta mesma cena -o moço, já não tão moço, manco, chegando manso, dispõe seus pertences na lona espraiada, e começa o expediente- correria certo o risco de logo sentenciar: mendigo pedinte.
Mas Dona Dô, sendo velha sabida que era, doída, doida e vivída sabia: Aquilo que Hitô fazia, no dia-após-dia, não tinha nada de mendicante, ou se tinha era mesmo só aquele tanto de mendicância que todos temos (e não temos?). Aquilo que fazia Hitô eram negócios, como um outro qualquer negócio, onde circulam déficit e superávits, e mais déficit. Câmbio monetário. Um esperto, um otário. Um oferta, outro procura. O que havia ali de diferente, simplesmente, era o teor da mercadoria: vendia-se alegria.

Dona Dô retira da bolsa de feira colorida, desbotada, um suculentoso caqui e desescancara uma mordida lascada na carne escarlate, sentindo um gominho muito sutil, quase cartilaginoso, completo sabor e satisfação. A boca se inunda, rubras cascatas larga garganta abaixo, lava doce na bochecha, lava a alma. Na segunda mordida a véia gorda surpreende a metade de um vermão saculejando a rabeta no fruto proibido. Antes de imaginar em que esquina escura estaria alojada a outra metade, meio mastigada, da sua companheira solitária, Dona Dô dispara, quase pare, aquilo tudo de caqui que por ali entrara. Num pulso liso como entrou, aquela fruta escrota cortou o ar janela afora, estirando-se violentamente no meio-fio de um beco escuro, monturo que visitou brevemente o ventre daquela infeliz agora se espraiava pelos redutos mais diversos.
No ponto seguinte Dona Dô se vê obrigada a descer do bonde que , como toda Quinta-feira, montava para voltar da feira com compras que durariam exatamente até a próxima Quinta-feira.

Indiferente a Dona Dô, à sua própria dor, Hitô comercializava aquilo que somente lhe tinha sobrado, e tinha sobrando: sua felicidade . Assim passava a vida e a rotina, sentado em um mesmo ponto, sob a fachada cruel e irônica de um Banco do País, tentando vender seu peixe. Se recebia qualquer quantia, retribuía com um sorriso, sincero, repleto. Oferecia doses de contentamento aos necessitados e com isso comprava suas camisas, coleiras, muletas. Remédios do um e do outro tipo.

Maldizendo as tantas quantas pragas que sabia, Dona Dô fez se ouvir no meio Rua, amaldiçoando vermes, frutas e quitandas de toda sorte. Distribuindo sortilégios.
Dispôs em fila indiana, ali mesmo, tudo quanto era descabimento de dizeres que ainda cabiam na sua cabeça.

Nas têmporas de Hitô retumba o trovão que anuncia lancinante procela a curto por-vir.

Latejando anátemas enquanto guindava suas compras para fora do bondinho.

O crânio, num rompante, vira um fardo. A dor se derrama sobre cada músculo. Hitô sente o corpo inundar-se em lagoa de agonia.

Pulsou o que havia de impropérios léxico-comportamentais no seu vasto repertório opróbrio enquanto despedia o condutor; tão entretida que estava com seus próprios réprobos, sendo o olho de um furacão e carruagem da moléstia, que estirou pelo chão sua carga.

Em Hitô toda mágoa fez-se física, enlameando a alma, rebulindo o sangue, sobrecarregando os nervos.

Arroz feijão desaba em cataratas de alface, uma avalanche de lanches variados carpeteiam a via pública seguida por uma nevasca de farinha de trigo, sal e açúcar que pinta de um branco sem impurezas o cenário.

Um clarão ofusca a consciência por um átimo, barra a passagem do tempo por um tempo imensurável; e o mundo se faz silencioso, praticamente lindo, pateticamente cândido.

Ergue-se alta a mão de Dona Dô, brandindo a polpa escarlate do fruto proibido que ela mesma violara. O fruto e o punho de tal maneira proporcionais que se confundiam, sangrando suco.
Desce veloz o braço e o vermelho se alastra em enxantema, maculando o alvo, que era todo o resto.
O caqui se espatifa no chão como uma rosa nas mãos da Mona Lisa.

Finda-se o tempo em que o tempo parou de passar quando Hitô sente um aperto bem perto do peito, mas dentro; mais dentro. Um pontada gelada que rodopia e trás de volta ao dia, se é que era mesmo dia.
Diante das íris dos olhos tudo se refaz em cores e águas. Garoa, pessoas. E de repente ele sabe o que fazer.

Dona Dô, exaurida, de pé no umbigo do caos que criou, viu Hitô, cambaleante –ainda mais do que o costumeiro- pendulando até um balcão onde pediu:

-Zé!
Um tiro de cachaça e dois canos. Pra já!

Hitô talagou a pinga que pousou à sua frente e empunhou sem muita familiaridade a escopeta que lhe entregavam.
Pediu outra cachaça, conferiu a munição e começou a se mover, pingente, em direção ao meio da rua.

Antes, até, dos dois pares de olhos se cruzarem, ele já teria percebido certo e bem realizado quem que era aquela, que ali se conjurava. Era sua própria dor, que por acaso estava ali de bobeira manifesta. O diabo na rua, no meio do redemuinho. A Hitô bastava que, sem jogos nem trapaças, saraivasse a cara e o corpo ali presentes. Inaugurando com um par de rosas de chumbo o jardim de sua própria vida, dali prá adiante, vazia de toda dor que rói as almas, quem sabe até talvez eterno como uma árvore?

Bastava que apertasse o gatilho, e que não tivesse estado em casa, neste dia que não amanheceu; e seria para sempre liberto da dor.

A eterna dor de estar vivo...

“Ao Grão Grelutz, o homem que anda incerto pois não sabe que pisa certo”

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