quinta-feira

Telefornica

Já acordara meia aflita.
Saiu de sandália e mini saia, depois de ter tentado uns quatro outros modelitos.

Naquela dia de sol chapado e alfinetes na cabeça, ela não encontrou o seu sossego.
Nenhuma posição lhe parecia confortável.
Ansiedade e tremedeira...

Sequer pensava (ou fingia com toda força que não pensava) no rapaz da noite anterior.
Contentou-se em arquivá-lo na gaveta dos "mais idiotas do mundo", com tantos outros pretensiosos pretendentes que já passara prá trás e outros que ainda encontraria pela frente...

À noite, não dormia. Não podia.
Tinha coceira nas tripas. Comichão morno na barriga, do lado de dentro.
O corpo implorando por seu momento, dentro.
A camisola de seda ficando apertada...


Era ainda baixa madrugada, e ela determinou que já não ia poder dormir.
Nenhuma posição lhe era confortável.
Nem água de beber, nem de banhar, de banho ou de cheiro, abrandava a brasa que ardia nela. Dentro.

Quarto fechado, janela aberta.
Inquieta na cama desgrenhada, a mão esquerda discou um número quase estranho, mas já decorado; enquanto a mão direita procurou os embaixos da camisola.

"Alô"

Um rapaz atendeu do outro lado da linha.

"Olá"

Ela trocou amenidades pelo telefone, conduzindo a conversa sem notar, enquanto mergulhava para dentro de si mesma, mal contendo o tesão que derramava em suspiros e gemidos.
Os dedos brincando de montanha-russa na virilha.

O papo foi ficando entrecortado pelo sotaque dos anjos e ela já não discernia palavras, só ouvia a voz distantemente. Respondia se podia, naquela linguagem dos amantes, que agente só sabe falar quando esquece todo o resto.

Ja reluziam as coxas, tingidas pelos fluídos primordiais que escorriam.
Chuvarada. Cascata. Enchente. Vazante. Dilúvio!
Ela explodia.

Saciou-se:
"Então tá. Beijo. Tchau."

E se desfez em sono grato...

Do outro lado, o rapaz custou a entender e custou a dormir.

Telônios, à Pê

segunda-feira

Flor da Pele

"A vida conspira."



Na certa, não era nada disso que passava na cabeça do Simão, enquanto ele amargava uma ressaca braba estiradão em uma cadeirinha de praia sobre as rachaduras da calçada.

Nada além de um domingo qualquer...



Nesse domingo, exepcionalmente, Simão poupara a vizinhança da reunião tradicional que promovia na frente de casa:

Cerveja, chinelo, casais desgastados. Frango frito, boi na brasa, música de nível baixo, volume em nível alto.



Na calçada oposta, do oitavo andar, um rapaz agradecia o silêncio, recebendo a primeira rajada de sol na cara, escancarando a janela...



Amargava uma ressaca igualmente braba, de maneira que os olhos dos dois se esbarraram, no feitio de um cumprimento. Um vendo no outro o peso da própria existência.



Esse laço fraternal se desfez tão logo ambos lembraram que não se conheciam. Voltaram a seus lugares:

Simão ativou seu radinho, e o radinho dizia: "Girassol /há teu cheiro em meu lençol"

O rapaz aspirou um perfume no próprio lençol, e o perfume não era seu, não era de girassol. Era perfume de flor: "Flor da pele".

Elias

Nascia. E mal Sabia que a vida estava ainda por vir, mesmo o espirito já tendo a carne habitado. A vida naquele ser só se despertaria dali alguns anos.
Dos zero aos sete, não se dava o trabalho de falar. Apenas comunicava-se gestualmente, mais a responder do que a indagar. Não tinha curiosidade e se tinha, não demonstrava.
Ia bem nas aulas, prestava atenção em tudo, era pacato. Porém nem CDF era, pois a lei do mínimo esforço era lei. No boletim sempre sete, nada pra mais nem pra menos.
Assim passou toda sua vida escolar. Quieto. Tinha uma paixãozinha ou outra a cada 3 anos, mas ninguém sabia: nem elas, nem suas amigas, nem seu diário, que aliás não tinha sequer nenhum rabisco a não ser seu nome: Elias Sorento.
Não gostava do nome, que diria do sobrenome então: Sorento - perfeito pra qualquer trocaldilho cretino…
Era inteligente e no fim das contas foi recompensado com um emprego à altura. Ironia do desino ou trocadalho divino, E. Sorento, consultor econômico no Rio de Janeiro, dizia aos grãfinos o que fazer para se tornarem mais grãs ainda, sempre poupando gastos, saliva e evitando a fadiga. Tinha tudo organizado entrava no horário e saia sempre um pouco mais tarde, afinal de contas era um aluno nota sete.
Um rapaz sem amores e só pudores. Não se trocava na frente do espelho e as cumprimentava com um simples e breve aperto de mão; quando muito animado, o que era raro, arriscava uma piada sem graça, porém, por ser especial de estória, cotava geralmente, uns 37% de risos. Se fosse uma piada contada a uma pessoa só, isso corresponderia a quase um sorriso meia-boca.
Numa dessas noites, início de verão, probabilidade de chuva zero e véspera de feriado, Sorento viria a dar a luz a si mesmo. A data do parto: Dia 16 de novembro de 1998, às 22: 08 de uma quinta-feira. Peso da criança: 73 Kg. Teste do pézinho: um mais aberto que o outro, unha encravada e n.o 42 no sapato.
Dez da noite em ponto, lá estava ele em um bom boteco a poucas quadras de sua quitinete no Leblon. Tomava uma cerveja e, sim, estava bem gelada.
No primeiro gole, as primeiras contrações. Sentiu algo diferente, bom. Reviu seu dia a procura de algo que tinha comido e que nao devia ter lhe caido bem, não achou nenhuma quebra de conduta. Não estava acostumado ao bem estar. Pediu então a melhor cana da casa. Tomou uma talagada e novas contrações surgiram. A luz do palco improvisado se acendeu e como não tinha paciencia pra música, Sorento fez menção de se levantar e ir direto ao caixa a fim de pagar o mais rápido possivel a conta.
Magestosamente sincronizado com seu destino, no mesmo instante, nas caixas de som soava uma breve microfonia. “Boa, noite a todos presentes.”Sem ter forças para correr e sem capacidade para elaborar nenhum cálculo, nem mesmo para pensar sobre as horas, Sorento se sentou. Mais uma cerveja pousou em sua mesa. E de pernas fechadas iniciava-se ali o trabalho de parto de um Indivíduo. Seus olhos arregalavam a cada nota entoada pela flautista e seu trio de chorinho, cada acento uma contração. A música baixou, dinâmica perfeita. “Pra quem sabe o que é amor ou pra quem tá pra descobrir ainda, essa música chama-se Samba Di Amanti’. Sete cordas e pandeiro voltaram à tona e a voz mais doce ja ouvida por um consultor, cantava um refrão, como quem sussurra um segredo ao pé do ouvido. Sorento de cara enrubescida fazia um esforço danado pra segurar os olhos cheios d`àgua, nao pode aguentar. A bolsa estorou; e para sua fortuna, toda a vida escondida atrás de nümeros e certezas, correram face a baixo numa enorme vazante.
A música foi terminando e, após uma saraivada de aplausos e assovios, vieram em fim as primeiras palvaras do Grande Elias, bem alto pra todo mundo ouvir:“Puta que o pariu!”

Lubinho

Tons mudos

Existem certas conversas que se dão, inegável, mas ninguém escuta.
Nem os conversadores nem faladores alheios.
São falas, como outras, que se dão por outros sentidos que não a audição.

Experimentamos nossos olhos. Diziam coisas.
Experimentamos os tatos. Diziam.
Experimentamos cheiros. Mais.
Gostos.

Nos gostamos, nos gastamos e gozamos.
E as palavras ficaram pequeninas. Miúdas demais para o festival que se deu entre duas carnes, que lutavam prá serem só uma de novo.

Mesmo assim, agente insistiu nessas palavrinhas, até que a madrugada azedou, a manhãzinha veio coalhando o céu e desperdiçamos a despedida com outras palavras.
Fadadas à insuficiência.
Assuntos de vento.

Telônios

Bolachas

Tudo se deu como se fosse de uma vez, mas foram duas.

Duas noites iguais em seus termos mais elementares.



Uma noite dupla, só podia mesmo desembocar em um dia duplo. Entra uma, sai outro. Entre uma e outro, reside o problema.

Pobrema dupro!



Dois casais ocupavam o Possante:

ele e ela, eu e um contrabaixo contra mim.
O baixo roncava alto e ocupava sete oitavos do banco de trás. Me conformei com meu oitavo, moído.

Íamos, os três, deixar a moça em casa.
Fomos.

Despertei com a sogra do rapaz rebocando corpo molambento e ébrio do próprio prá fora do bólido. Sacudindo pelo colarinho, feito fantoche.
A boa senhora distribuia tabefes e bolachas a esmo. Afinei, me encolhi no banco de trás e fiz cara de trompa.
Em vão.
Quando se saciou de esbofetear o mocinho, me ofereceu também um par de sardinhas e pôs todo mundo prá dentro. Serviu biscoitos e bolachas. Cafezinho.

Proseemos manhã adentro.
A sogra do outro fez-se um doce, arependida? Envergonhada?
A visitas se envergonhando sem saber; era madrugada de noite alta afinal de contas.
Tratou-nos a pão de ló, serviu-se frios, deu conselhos e ainda insistiu:
"leva esse livro, meu filho"(emprestou, mas fez questão de pôr o próprio nome e telefone na contra-capa).

Saímos era dia alto, atrasados pro próximo compromisso...
O livro é ótimo, os dois.

Telonios

Boxster

Procurava chegar tarde, sempre.
Assim, no que chegava, o quente já estava quente.
Sabia que sempre alguém podia se levantar. Alguém sempre levantava...
Chegava junto, nunca manso.


Preferia chegar cedo.
Montava tudo e esperava.
Se fazia à vontade enquanto o circo se armava à sua volta.
Chegava manso, observando e abusando.

Cada um sabia de si e de seu lugar, mas tem hora que agente escapa dagente mesmo...

Por isso que, logo cedo, o segundo - que chegara primeiro - foi-se chegando a um pretinho básico que emoldurava uma branquinha-morena.
Formosa de nascença, presunçosa de educação, linda por inclinação e ingrata por profissão.

Ela soube ser simpática, tinha essa prática: risos, assuntos de vento.
Ele soube ser apenas sincero: assim como costumava ser.

Chegou o primeiro - não tão pouco tempo depois - , de conversível amarelo.
Mais que depressa vagou-se uma cadeira.
Ela foi exercer-se. Se prestava a ser agradável, e era.

Ele foi também, sentou num banco sem braço nem encosto e principiou o ritual. Se prestava a esquentar o baile, com caretas e ritmos.

Cada qual com sua profissão, funcionários em função.
Ela soube sair, vitoriosa, cabelos ao vento, aninhada num banco de couro.
Ele soube também, sempre soubera. Veio buscar o que buscava. Agora ia, inventando outros desejos.

Sobrou o outro. Outrora o primeiro, depois o segundo, enfim o último.
Tudo acabado, baile encerrado.

Atabaques e badulaques pesando no lombo.
O caminho de casa é longo, mas só e sozinho se chega lá...

Para Aline Rio Grande

quinta-feira

a caminho

Já era praxe, mas ainda ardia toda vez que ela adiava a tal conversa.
Ele derramava versos, de amor, sempre. Às vezes rancor também.
Já viu vir um, sem o outro?

Esqueço que amar é quase...
... é quase sexo, mas sem carne.

Há dias não pensava em outra coisa, nem em todas as outras coisas, que pairam por aí sem o perfume muito da uma moça, e só dela moça mesma; mesmo, ímpar.

Aguardava (aguardavam?) espremido de ansiedade o dia que era o tal. De perdões, confissões e, tudo caminhando segundo um sonho, conclusões.

Não uma dessas que se concluem e findam. Essa não! A outra.
Não "a outra", aquela uma, daquela noite. Essa não! Ela.

Longas foram as noites que passaram sem ela, e aí veio o dia. Sempre vem, né?

Custou, mas veio. Veio, mas não direto.
Indireto, mas indescritivelmente certo.
Sem falhas, sem equívocos, sem pressa, prá não perder a deixa.
Sem melodia, sem palavra, prá não perder o valor.

Valeu? Valeu.
Deixar não deixou, mas não perdeu a deixa, e isso bastou.

Uma linha invisível que ainda anda tesa, tensa, suspendendo o infinito num beijo.

Telônios

terça-feira

Publiciverso III

A Araruna pia, de dentro,
do fundo mato
Arrepia os desavisados com seu entoar
azul, suingado.

Papa-Capim, ali passava,
disparou a pensar
Só escutando,
Araruna cantando.

Da mesma exata maneira, cada um
quando passava por ali, esbarrava de vagar
e divagava longe, na mente

Matando as saudades dos distantes
Que logo apareciam para apreciar.
E ali foi juntando gente, e gente

Eram dois, dez, dez milhões
de repente a dançar
Idos, vividos e as crianças...
Juntos!
e a alegria.

Telônios

Publiciverso IV

Era fim de junho.
Um menino, muito do pobrinho, choramingava lá no canto, vendo a lenha da fogueira de São João se queimar.
Para ele ali, naquela hora, nada era nada. Não ouvia foguete, não lia bilhete.

Era a última quermesse, e ela... continuava longe. Toda sorrisos do outro lado do pátio. Ele: lágrimas; e olhos.

O rapazinho tanto chorou que conseguiun até o que não queria: fez chover! Arruinou-se fogueira, quadrilha e noite dos mais bestas, que se deixaram impressionar pela garoa gorda.

Quem ficou viu, mas não pode contar. Nunca achavam palavras que bastassem para tanto espanto: o menino brilhava de luz, e a chuva que caía nele se derramava no chão. E eram gotas de prata pura!

Foi um milagre! Ou, quem sabe, alguma coisa que puseram no quentão...

Telônios

Publiciverso V

Batia seu pilão
Morena-azul bela e triste;
recortada contra o mar-azul
sem fim

Batia no pilão a raspa
da última saca de farinha de milho
prá fazer boa cachupa.

Primeiro as crianças,
também então os mais véin
e até a cabrita.
A fome levou tudo.

Na praia pilava farinha,
na praia choravam sozinhas,
muita mucama bonita...

E socaram e socaram o pó
mesmo pó em que semearam,
até cada pilão e cada mulher
estar afundada na terra.

Pipocaram só
no meio dos desertos
fagulhas na farinha massetada: ouro puro!

Telônios

Publiciverso VI

Vó véia largou
a panela lá, na cozinha
e foi ouvindo:

O afã do fandango
próximo, logo ali...

Sua colher de pau
sobrinha predileta
de fogo de lenha

Amiga antiga
das panela todas

já nem se reconhecia
estalando batucada batendo
contra o ferro quente

Vó véia pegou
na panela lá, na cozinha
e foi batucando...

Telônios

Publiciverso II

Bate zabumba
Bate bumbo
Ganga zumba
tem saudade

Na melodia da museta
Nostalgia se escorre
mais um dia que se morre
prá noite ir até mais tarde

Bate um
Outra rebate
Batmacumba baticum
é no instante que se faz a arte"

Publiciverso I

Bate zabumba, bate moringa
o espírito tem sede
Ganga zumba e Rainha Jinga
nas carnes, tem vontades.

Na gorda garganta
da larga corneta
até o bode endireita os cornos
prá ouvir o que se passa

é o vento que sopra
vindo do pulmão
no momento exato
sussurra um trovão

o guincho não é de graça
faz muita parte:
e apito é bonito, até...
da chalaça brota arte

Telônios

Aparição

Conversar, não conversavam.
O corpo fala mais, pois fala no cheiro, no veludo e no movimento.

É claro, antes tem sempre um par de formalidades a cumprir:
"Boa noite"
"Boa noite"
"Dança?"
"Nome?"
"Calor?"

Calor!
Ela irradiava as beldades da forma e da essência, paradinha no fundo do salão de baile.
Ele batia suas notinhas sem parar, no jeito de um polvo-pavão, lutando prá arrancar qualquer ondulado daqueles quadris tão bem acabados. Um pezinho batendo, que fosse, marcando o contratempo...
Nada! Ela seguia irredutível.

Tiveram uma pausa. Ela se fez aparecida, ele chegou junto.
Perambularam procurando qualquer desculpa prá ser atracarem ali mesmo.

Não encontrando, ela tomou as rédeas e carregou o novo bibelô pro Paraíso.
O mundo se pintou de vermelho e bosta de coelho.

Se tornaram em ninho de cobra viva. No entrelaço de membros e braços, ele nem viu que ela lhe punha, com todo carinho, o laço no pescoço.
O laço era de contas amarelas, alinhadas num cordão fechado.

Ela foi se, de repente. Negou o convite:
"Não posso..."
E se sumiu no Sumaré.

A primeira coisa ele que sentiu ao acordar, sozinho, foi o aperto do cordão na garganta. Na garganta e no fundo do peito.

Nessa manhã começou sua procura.

Telônios

"Mamãe não quer, papai não deixa"

Não era a primeira, menos a segunda, vez que lhe enrolava.
"Te ligo", não ligava. "Te beijo", não beijava. "Te deixo", não deixava.
Desassossego tem forma?

Fez risoli, rondele e rocambole dele. Por conta disso, quem deixou foi ele, que se dizia, perguntando:
Quem cala não consente?
Se o som é a pergunta, não podia ser - a resposta - o silêncio?

Deixou de choramingos, deixou os compromisso e tirou a meia, que é prá melhor meter os pé na jaca.

"Fiz merda, que bom!" foi o que ele se disse, antecipando a manhã seguinte.
Se não me engano é o que ela diria também.
Se bem me lembro, mal me esqueço.

E fez, mas fez. Carência, vingança e cachaça, se combinadas tem mais peso. Na consciência.
Com o tempo, agente vai aprendendo a lidar com a culpa. Mas bem ali, no mais quente do beijo menos decente, a outra me aparece, de repente:
"..."
"Eu... hum, hã...
Tava ruim, mas depois melhorou, mas agora..."

Ela desferiu:
"Vai com os seus, que eu tô com os meus"

Ela foi.
Ele foi.

No dia seguinte, se falaram ao telefone. Suas vozes se acariciando feito lixa grossa.

Amanhã nos vemos. Amanhã saberemos.

sexta-feira

Todas são

Primeiro viu o lustre, muito familiar, de todas as manhãs.

Daí viu-se todo estatelado, ao lado de um monte de carne.
O monte respirava, e exibia a entradinha do cofre semi encoberta pelo lençol e pela calcinha, vestida do lado avesso.
As carnes cheiravam forte, o lençol mantinha uma certa humidade, de suor e secreções variadas.

Não tem jeito, agente não se dá o valor...
As primeiras memórias da noite anterior vem chegando, do mesmo jeito que vão descendo os passageiros do trem, numa estação qualquer.

Saiu pelas calçadas e passarelas da madrugada procurando sarna prá se coçar, ou pelo menos um cachorro prá matar a grito.
Solidão e bebida, poeira leve. Farinha pouca é bobagem...

Deu no que deu

Virou-se e fingiu que era pesadelo, mas não demorou, e o pesadelo chamou.

-AmooOOOoooOOOoooOOooOor... - pustulenta lânguida!
Passaram a manhã no range mola, até o estrado dar um estalo.

Despediram-se cordialmente e às vezes fingem que não se reconhecem no metrô.

segunda-feira

"Prezado Senhor X:
Quisera eu alcançar um tal grau de auto-consciencia anal, para desenhar linhas tão belas e recheadas de sabedoria como essas que descarregaste.
Porém, tenho andado um tanto envezado, cheio, quero dizer. Tal desconforto me prende o intestino de maneira que só consigo escrever merda.

Quem sabe poderias me guiar, pelas obscuras sendas retais da filosofia do bem-cagar?
Rogo para que ilumines aquele canto escuro, onde o Sol não brilha, para que mais uma vez eu possa de desfazer deste imenso peso que carrego.

Grato pela atenção dispensada

Humildemente

Sr. Bostolho"



Eh meu rapaz cagar eh bom, mas alcançar o auge das técnicas bostais,ou seja, a cagada perfeita,eh uma arte que poucos conseguem.

Essa arte secular consiste em cagar um único charuto, onde o aglomerado de putrefatos alimentos não absorvido pelas microvelosidades devem conter uma quantidade de líquidos e sólidos harmoniosa o suficiente para que a consistência da mesma esteja propicia para que a merda coaja de forma tão espetacular com a gravidade saia em uma linha reta perfeita, e como dito antes em um único gomo. E por ultimo e principal fator para uma cagada perfeita que eh não ter que limpar seu ânus depois, ou seja, a merda sai e seu cu fica intocado.

Eh verdade, isso eh possível, esta comprovado que há pessoas que conseguem e esporadicamente ouve-se historias de que pessoas sentiram os sintomas foram se limpar e zaplau nem sequer rastros ou freadas.
Houve um estudo que constatou que, pelo fato do cocozao sair em uma linha tão reta em relacao ao centro da terra, ela não encosta nas paredes ou pregas, mantendo um melimetro de distancia do cu ao se dilatar em movimento de entecipacao fecal.

Existe outra técnica que eh para iniciantes que eh a de peidar e cagar ao mesmo tempo, e se sua imaginação não lhe completar o quadro dando lhe uma vaga ideia de como seja, eu te contarei na próxima vez...

Senhor X

Jonão e Telônios

sábado

O Tempo do Homem que Monopolizou o Mergulho

Tinha esse país e tinha um grande Homem, e estava tudo correto. No começo da manhã, quando o sol rosado despontava, uma grande fila começava a se formar na frente do portão de metal, que abria pontualmente às 06:00 horas. A fila começava a se arrastar, enorme que era, pelos quarteirões rodeados de cachorros e cachorros quentes, que se aproveitavam dos lixos humanos proliferando. A carreira se agigantava ao longo do dia, e os ladrilhos pisados da calçada iam endurecendo debaixo do falatório, da tagarelice, da impaciência dos homens. Muitos deles chegavam ainda pela noite, sem estrelas, e esperavam entre o ar mais frio da madrugada uma dianteira. Esperavam nunca mais esperar, no meio de cobertores velhos e sapatos, marmitas e álcool, palavras trocadas sem gosto, sal, sono. Um passo à frente, o portão aberto espera os homens com calma, e com calma todos são revistados entre os cabelos, no peito e costela, debaixo dos braços, genitália, pernas e pés. De frente e de trás, a confirmação da entrada é a garantia de nenhuma arma branca, gente preta ou qualquer perfurante. Inalantes e líquidos também são proibidos, mas podem ser retirados na saída, pagas as devidas taxas.


***

Quando andava pelas pedras que rodeavam a praia de sua infância, o Menino sabia muito bem onde pisar. O mar ali era muito recortado, e de longe não se podia ver muito bem o que era menino, o que era bloco e pontas de pedra. O Menino não se mexia, perdido entre a linha da onda e da brisa fresca, e assim passava, um após o outro, os dias. De vez em quando um pássaro-agulha costurava a água, buscando um peixe pra sumir no azul. Mas certa vez, como nunca antes, o Menino levantou, puxou um naco de ar e pulou, de cabeça, pra sumir na maré.


***

O local é um galpão muito alto, feito com pedras de granito cinza, e era o único lugar desse país onde todos podiam entrar na fila e esperar tanto, por algo tão esperado. Por isso que todos esperam.
O Homem teve realmente uma bela idéia, e foi belo quando, em meio às lágrimas descobriu o sentido de tudo, e quis mostrar à Humanidade como isso era. Começou muito de pequeno, e com muito suor, sangue e estudo, conseguiu erguer um quartinho. Dentro desse quarto se dedicava o dia todo a aperfeiçoar o seu mecanismo, que abria à experimentação nos fins-de-semana. Como se fosse obra de Deus, ou do Diabo mesmo, um ano depois conseguiu um terreno perto do Centro da cidade, onde suou alguns anos mais de sua vida para erguer quatro paredes que deram lugar a uma sólida estrutura onde ninguém, ninguém jamais pôde sair como havia entrado.
Construiu um sonho e o ofertou a preços módicos, a todos. A plataforma ocupava o centro do galpão e tinha muitos e muitos metros medidos, tanto é que se demorava vinte minutos a subida. Lá, duas mulheres muito bonitas e peitudas sorriam e amarravam os pés dos homens bem forte. O indivíduo andava até o fim da plataforma e se deixava cair com os braços cruzados no peito, os olhos bem abertos, e assim a fila corria. Quem chegava lá embaixo ficava a alguns milímetros da superfície da água, contida dentro de uma piscina redonda. Sorriam.
A fila caminhava passo a passo e cada homem repetia os gestos necessários, com uma sanha de medo e alucinação dentro da barriga. Enquanto esperavam, ouviam mais uma vez a história do Menino, contada muitas e muitas vezes desde todas as infâncias. E a história aqui ainda se repetia no meio de grande comoção. E todos podiam sentir pela primeira vez o ar frio lá de cima da plataforma, passeando entre os cabelos na queda com os olhos abertos, a respiração presa e o coração sufocado, frente a frente com toda a água e tão perto dela. Dois centímetros do nariz, o reflexo da água olhava dentro dos olhos de quem encarava. O que viam? E, pendurados pelos pés, os homens viravam pêndulos de um tempo que só parava um pouco, pra continuar sempre correto.
Dizem que certa vez um homem do interior, sem querer, deixou cair o relógio de pulso na água e endoidou, pois teve um visão.


Carolzinha.

terça-feira

Dia frio, ler um livro...



O gelado do meu pé esquerdo, todo meio húmido, me acordou.

Pior que começar o dia com o pé esquerdo, é começar o dia com a meia do pé esquerdo molhada!

Me veio uma frase na cabeça: puta que o pariu!



Fora isso, era a chuva lá fora. A fábrica buzinando, o ônibus buzinando, os povo fingindo que não era segunda-feira; mas eu sabia: era!



Dentro tinha goteira, e pinga ni mim! De fora tinha a chuva, minha cúmplice, desolando a paisagem.

E da goteira veio a gota d'água, pingando na ponta do pé, prá fora da manta. Toda ela insuficiente, conspiratória.

Estiquei o olho esquerdo semi-aberto pro despertador. Assassino dos meus sonhos, que repousava ali do lado, tenso, contando os segundos para abrir o seu maldito berreiro: pi-bibibibibibibibibiiiiiiiiiii.

Acordador: invenção do belzebu!

E ele me disse: ainda cedo, mas já tá tarde...



Fui a alfa meditar, e foi assim que decidi: decidi não ir. Decidi não ir e ficar!



Fui ficando...

- três meses depois foi encontrado morto por inanição no próprio leito, com um grande cigarro de maconha (meio fumado) nos lábios arroxeados.

Telônios

quarta-feira

Uma coisa das Antigas...

33

Fechou a porta de saída como quem esvazia. Esvaía umas idéias madurando que cresciam nos últimos dias, saindo que nem espinhas e pipocando pelo rosto mesmo. O sentimento era de estupefação.


- Eu pego esse maldito!


Todo esse roteiro, lágrima sobre um tanto de tranqueira, roupas véias e pó, mofo e cachorro molhado, baguios de toda maneira, caraminholas e minhocas, juntas num caldo bem forte que é o pessimismo da moça, feita perfeita para amar! Ugh! Saiu por aí precisando andar, por que agora que não é mais tão só precisa se encontrar. Como se jogasse um esconde-esconde consigo mesma, procurou caçar uns problemas por aí. Arranjou o jeito de dar nó em cobra, se afobou demais e parou de novo pra pensar com força. Uns negócios carcomendo, nada muito claro aparecendo, isso juntando com aquilo e uns nós amarrando tudo e mais. Tenta:


- Vou fazer a lista das queixas, tudo dando pitaco, o copo meio vazio, a cama desarrumada, puta moleque chato, reclama de tudo, invade tudo, fica com cara de bosta, num lava uma louça, não sabe cantar nada, anda torto, não fala que eu sou bonita, não gosta de sair de casa, eu tenho que ficar agradando, eu tenho que ficar sofrendo, se ele tá aqui é meio ruim, se vai embora é ruim inteiro, eu não posso nem ficar triste, tenho vergonha do meu cabelo, se eu baixo a guarda ele repara fica falando, mas o pior é quando pára! Eu não sou mais nem apaixonada, nem poesia eu faço mais. Minha alegria ficou dura, ela demora um tempo: misturou com a água que eu bebo, se não me esforço nem percebo. A lista das queixas continua, o copo meio vazio. Se é meio vazio eu deito. Eu paro. Tanta coisa pra pensar. E quanto mais eu penso mais fica embaçado. Vou acabar com esse negócio. Não tá indo, não tá caminhando...


Mas a constatação vai virando cimento, que a gente cada vez põe mais areia. E toda pessoa sabe que a razão tem jeitos de ser cruel, então o cimento vai cimentando, unindo os blocos da menina.

Constatação...


O vento frio entra no nariz e pela nuca, saudade do sol, pouca blusa. O frio dá raiva, e a raiva agora é de tudo ser tão errado, como se todo o ódio se juntasse bem ácido num ponto da boca do estômago, desvirginando um conformismo doido porque raivoso. Sentiu que nada era imune. As casas ao redor, todas magoadas, baixavam a cabeça: sim senhora.


- Que cê ta olhando?


A rua humilhada, tudo esmaecia, a noite desmaiava. Já viu uma mulher braba?

Tudo em volta conspirava, chegava no pé do ouvido e soltava um urro.

- Filho da mãe descabacento! Vou lá porque isso não tá certo! Tem que acabar!


Já estava na rua detrás, foi fácil mudar a rota pela viela, andar mais um pouco, a mil. A mina com a boca seca chegou na porta do amado, pobre coitado.


- 33, sou eu, abre aí pra gente conversar.


-Entra, que foi?


- Nhé.


Deu um beijo jogado, nem precisava.


A sala rodava em volta dos dois. O único som era o estalar dos dedos, a novela das oito.


- Vou dizer logo porque eu não sou molenga e falo o que penso!


- Tô ouvindo!


- Ó, meu mundo tá bagunçado, eu gosto muito demais de você, mas não tô agüentando, é difícil ficar junto, não sei o que vai ser (chôro).


Um sorriso tinge a boca do rapaz, que quase suspira de alívio:



- Se vira, nêga!



Carolina.

Gota de chuva de prata

"Era fim de junho.

Um menino, muito do pobrinho, choramingava lá no canto, vendo a lenha da fogueira de São João se queimar.
Para ele ali, naquela hora, nada era nada. Não ouvia foguete, não lia bilhete.

Era a última quermesse, e ela... continuava longe. Toda sorrisos do outro lado do pátio. Ele: lágrimas; e olhos.

Ali no canto da vida, os estalos da grande fogueira ponteavam seu sofrerzinho imenso.
Prá ele era novidade, sem ter o entender daquilo que lhe sufocava as tripas. E se desfazia em lágrimas.
O rapazinho tanto chorou que conseguiu até o que não queria: fez chover! Seu Pedro, de dó que sentia, fez descer do céu as águas, derramadas por anjos enrugados, prá ver se lavava tanta dor daquela terra.
Arruinou-se fogueira, quadrilha e noite dos mais bestas, que se deixaram impressionar pela garoa gorda.

Quem ficou viu, mas não pode contar. Nunca achavam palavras que bastassem para tanto espanto: o menino brilhava de luz, e a chuva que caía nele se derramava no chão. E eram gotas de prata pura!

Foi um milagre! Ou, quem sabe, alguma coisa que puseram no quentão...

Mas lá estava o menino, agora de pé no meio da praça, dançando encharcado nas derradeiras brasas da fogueira.

Alegria leve.

Dançou e bailou, dava piruetas. E agora ele mesmo é que era o fogo, aceso sob a chuva.

Dona Zéfa, a última a deixar a festa, contava na manhã seguinte o lindo espetáculo que assistira, daquele menino. Mas que não pode ver o último ato, vergada pelo peso do sono e da artrite.
Sabia somente que ele lá ficara, dançando.

Mais tarde, mais espanto: no centro da praça da matriz, onde ainda ontem ardia larga fogueira, as pombas pousavam leves na estátua de prata, que ali, em segredo, se instalara"

Telonios

sexta-feira

Outras capitais (reonhecimento)

Buenos Aires, 22/06/007ñ. 04:34 da matina.

(segundo fasciculo de uma serie de oito, cujo primeiro episodio, infelizmente, nao pode ser registrado pelo seu pontencial de comprometer outros camaradas envolvidos.

Acordei com o ruihdo distinto do trem de pouso contra o asfalto da aeropista.
Entre a decolagem e o pouso, praticamente me desfiz da minha existencia, excetuando-se uns cinco minutos para consumir um lanche plastico, servido por manequins automatizados, em pleno voo.

Entre a aeroporto e o centro da capital, fui colhendo toda informacao que pude a respeito da terra estranha em que me embrenhava, entre bosques de pau seco e barracos.

No hotel Colon, fomos, os tres, dirigidos imediatamente para a lista de espera. A equipe, composta por Madame Milikas, comandante de operacoes, Yurao, incumbido das areas de registro visual e contatos e eu, que tratava de todo o resto, aproveitou a oportunidade para provar das famosas carnes portenhas.

Comemos e comemos, e fomos, assim que possivel, direto para os aposentos, em busca o irracional descanso que qualquer percurso exige, conforme sua extensao.

Algum tempo depois, nos reunimos no saguao para a primeira volta de reconhecimento do meio.
A cidade andava paralisada por conta de uma final de copa de futebol. Assim, acessamos nosso primeiro contato local imediato, que nos forneceu poucos dados uteis de fato, mais foij de grande valia para efeitos de ambientacao do grupo.

Seguiu-se uma minuciosa analise das propriedades caracteristicas do local, a comecar pelo que se dispunha em termos de provisoes e servicos disponiveis.
Ao termino da volta de reconhecimento, mais uma vez nos recolhemos em busca do merecido repouso, inviabilizado pela balburdia que se dava nas ruas, sob as janelas.

Enquanto a Comandante Geral ajustava as minucias do comando, desci com o velho Yurao a praca do obelisco, a fim de coletar mais dados e anngariar o material necessario para finalizacao da demanda.

Entre berros e brados dos seguidores da seita Boca Juniores, nos infiltramos.
Aproveitamos o momento para completar as informacoes que faltavam.

Dali, regressamos a base para ordenar os dados coletados e fazer os preparativos para a missa do dia que viria...

quinta-feira

Caminho de Santos

Antes era diferente. Prá dormir era um parto. Eu fritava nos lençóis horas a fio e só caia no sono depois de bem passado, por mais cansado que estivesse.
Antes eu trabalhava em escritório, esperdiçando suor salgado em um cotidiano insosso.
Só dormia e lavrava. Sono era leve, labor pesava.

Agora mudou...
Noutro dia, por exemplo, parece que nem deitei e já sonhava, quando o delega gritou: "RUA!"
Zonzo, fui me levantando, montei na Barra Forte e deixei a DP pedalando, suave.

Toda aquela confusão só por uns par de caipirinha, três maços de cigarro, chopps e porções. Era caso prá tanto barulho? Eu digo: "Não era!".
Era?

Se comi e não tinha prá pagar, é correto que me enquadrem no xadrez? Lugar onde menos poderia levantar algum com que pagar as pendências?
Certo seria, me deixassem ir, de bucho cheio e sem suor?
Isso é que não!
Mas então, qual seria a certa medida a se tomar? Se eu tomo e não pago, me nego?

Me pegaram. Me perguntaram.
Falei de cara limpa: "Fiz!".
Me carregaram. Encarceraram.

Em meia hora, lá estava eu, na rua de novo. E tanto barulho por nada!
Rotina: "Sofrer é profissão de vagabundo".

No fim das contas, ninguém pagou ninguém, comi, bebi e dormi no alheio.
Me saí mais inteiro no fim do expediente, barriga cheia e cabeça limpa.
Pergunta: "É direito?"

Já não penso. Hoje só durmo e descanso...

Telônios
trabalhar. (Do Latim vulgar *tripaliare, 'martirizar com o tripaliu (instrumento de tortura).
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
II edição, revista e ampliada. Editora Nova Fronteira.
Rio de Janeiro, 1986.

terça-feira

Sujeito de aspecto curioso: um par de suspensórios lhe conferia um ar de seriedade obsoleta, desmentida pelas pisadas que dava em degraus que só ele via. Sapatão de couro, outrora valeu ouro e agora punha água prá dentro e o deixava dedão prá fora. O resto era de acordo com os restos: amarrotos e sujados.
Espiava e sonhava, vendo a juventude exercer sua juventude na beira dum bar com música ao vivo. Ele, morto, do lado de lá da rua, nalguma calçada da República.

Escavocou no fundo do buraco das oreia. Catando piolhos entre os neurônios prá ver se algo parecido com caldo se extraía dessa mente sacana. O cidadão ali me olhando como quem diz: "Por que é que você não vai tomar no olho do seu cú?" Mas nada dizia... só olhava.

Dali há um tempo, aproximou-se e perguntou se eu queria comprar pó. Erva? Doce? Erva-doce?

Que estranha mania que as pessoas têm de me oferecer todo tipo de muamba proibida! Até chego a pensar que é só comigo, problema meu.
Nada! É com todos: quem não quer?

Mas será essa a questão? Talvez o direito fosse perguntar: Quem não tem?
Quem não tem, quer. Quem quer caça. Quer queira, quer não, um dia acha, pois esse é o destino inevitável dos que procuram.
Assim diz o ditado...

Quis me passar um comprimido: 50 paus.
Pechinchei: isso não tenho...
Amoleceu: 35 conto.
Mendiguei: 15 pilas.
Negócio fechado!

Ah! Ele queria que fosse! Voltei prá casa com meus quinze conto, ele tomou sua aspirina e foi dormir...
Assim diz o samba: Laranja madura na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé.

Eu creio. Sobrevivo.

quinta-feira

Fudido com "O" - Sétimo Fascículo

Aquela Vaca!

Saindo apresssada da toillete, embarassada pela sujeira que havia feito, senti o muco dos olhos que me acompanhavam escorrer pela coxa. Desatoxei a calcinha por pura crueldade e deixei aquele pardieiro, feliz em constatar a eficácia das minhas ferramentas.

Ao cruzar a grade de saída, o gorila da porta me passou um bilhetinho e um sorriso de cumplicidade como quem diz: "tô sabendo, mas essa vez passa...". Piso firme na calçada, me equilibrando nos saltos enquanto afasto o cabelo para ver se ouço o canto do realejo: nada.

Sozinha na calçada, sozinha na noite, sozinha na cidade, sozinha no mundo. Surge um letreiro e entram os créditos. A trilha sonora é alguma coisa entre o Genival Lacerda e o Stomp.

Algumas horas depois, o faxineiro do putero vai ao telefone aflito. Quando chega a polícia já é dia, e o sangue seco da loura do banheiro traz também as primeiras moscas da manhã.

Lá se foi Maria Lenk, ida de coração ao lado de lá, onde agora nada em nada, e tá bem mais à pampa...
Fica aí nossa homenagem...

quarta-feira

outra mínima

O TAO DO LESO

o coco tá oco
(tá osso)
penso, repenso: dispenso
(bagúio tá tenso)

segunda-feira

Fudido com "O" - Sexto Fascículo

Make Up: a espada mágica

A primeira reação àquele trinado, que se pronunciava por detrás das sujas paredes do banheiro feminino, foi fincar o pé no azulejo, como se aquilo fosse derrubar a casa.

Okay, não derrubei porra nenhuma e ainda descolei uma dorzinha incômoda no dedão do pé direito, que latejava em contraponto com o galo que cantava dentro do meu crânio, desde a hora que chifrei o teto. Aquilo compunha um terrível acompanhamento rítmico para a melodia do curupaco que eu andava perseguindo. E ele me maltratando...

Cansada de dar murro em ponta de faca. Que minha mãe não me criou prá ser prego, nem pra chupar prego, recobrei alguma dignidade raspada do fundo do tacho da alma.
Uma Lourona entrou no banheiro ajeitando a calcinha. Trouxe consigo o cheiro quente e misto das suas curvas. Trocamos palavrões amistosos e ela desapareceu numa cabine.

Fui ao espelho.

fssssssssssssssssssssss!!!

Os pelos da nunca se arrepiaram todos, no contato dos meus olhos com meus olhos e toda a fuligem entre um e outro.Fazia tempo...

Enquanto eu me perdia na minhas próprias feições, outrora mais delicadas, a loira ressurgiu. Me divertia tentando enxergar uma beleza esquecida por trás das tristeza todas e ela logo percebeu, me estendeu a mão com rímel, base e batom.

Retocamos juntas a maquiagem. Fazia tempo...

Acertei a altura dos soutien, ensaiei o sorriso. De novo. Sai me pensando linda. Fazia tempo...

terça-feira

Fudido com "O" - Quarto Fascículo

BUCÓLICO BUKOWSKI

No campo.

Um lindo campo de aragens mansas. O Sol doirando dulcemente os matizes, sutis-verdes, de um gramado macio, viçoso.

E até flores! Mil cores de pétalas ponteando o manto esmeralda. Umas brincando de pêndulo com a brisa. Outras, borboletas.

Uma coleira de couro jaz a meus pés. Mas não é minha.
Uma lebre saltita mato afora. Mas não é minha.
De algum lugar, sei do meu dever. Sei que devaneio, e vou atrás dela.

Quase alcançando... o verde desvanesce.


Na latrina.

Outrora verdes campos se refazem em gorfo úmido, vicioso. Fragrância fina da pústula. Por todos os lados, o que eram flores agora eram só caco orgânico e mosca. E eu.

Me levanto tentando espantar uma nuvem de percepção inventada que se formou ao redor da cabeça.

UI! A cabeça, o teto: mais dor.

Entre praguejares, uma melodia se assobia. Depois da parede, esperança.


(c'estnefinitepas, tá ligado?)
Telônios

segunda-feira

eita!
Faz tempo. Alguém com saudades?
Alguém nunca?

Oquei, primiramente peço desculpas pela ausência destas "páginas". Depois, por conta do espírito reincarnante da Páscoa (alguns preferem morto-vivo), anuncio algumas mudanças:
De agora em adiante todo mundo vai ser muito feliz no rolê.
Daqui prá frente, tudo vai ser melhor.

A começar, os textos postados (que merda de palavra, alguém aí conhece uma substituitiva sinônima?) vão ficar mais curtos. Sugestão do camarada Cao-Ão a que acatarei, pois também sou do mato, como o pato e o reggae.

Txt: + curto.+.

Telônios

terça-feira

O Levante Avilucionario

(Ou a trajetória simbólica da Pascoa no imaginario social contemporaneo)*

A Giserda, um dia tranqüila a ciscar, viu uma minhoca estendidinha no pé de uma goiabeira e já foi logo tirando um naco, pegou um teco do rabo dela com uma belisbicada rápida, e lembrou-se de Caroca, que há muito tempo tinha ensinado prá ela a diferença entre a frente e a culatra das minhocas, num daqueles dias cumpridos, mas que o tempo passava sem se fazer sentir, de um jeito que de repente cacarejava sua mãe, aflita por sua única descendente que não virou gemada, nem ovo frito, mexido, porchet, quente, omelete, fios de ovos, clarineve, cola de farinha, ungüento para queimadura a ferro ou fogo, presente de aniversário nem enfeite pascal de qualquer tipo, enfim, chamando a filha para baixo de sua asa.

A galinha Caroca era uma d’Angola que só aparecia na segunda metade do dia, quando ele começa a voltar a ser noite. Giserda já ouvira certa vez por uma rachadura no bico da Velha Caroca, que o dia se dividia em duas partes, na primeira o Reluzente Grande Grão Celeste sobe no telhado da sua granja pra tapar o furos que se abrem de noite, enquanto a chuva tenta entrar para alagar as camas das suas galinhas. tem dias que ele tá mais preguiçoso e quase nem vai trabalhar, ou faz o serviço sem vontade, e nesses dias agente não vê o brilho e nem sente o calor dele trabalhando e a chuva entra pelos buracos que a Gavião Noite fez, e molha tudo.
Na segunda parte dos dias ele desce do telhado, e isso quer dizer que é hora de voltar do trabalho também. Mas todo mundo sabe que tudo isso é bobagem, e que o Grande Grão na verdade se chama Sol e que ninguém precisa saber essas coisas de telhado, basta seguir o Sol sempre que ele sempre vai te trazer para casa. Mas de qualquer jeito, era nessa hora tonta, em que o Sol está no alto de seu telhado e que é quase impossível se achar a própria casa, a não ser belos brados estridentes da Dona Juelheta, era nesses momentos dos dias que a Galinha Caroca dava os bicos pelo terreiro, sempre ciscando devagar, fazendo muitos ruídos que ninguém entende, toda velha e magrela, mas botadera como ninguém e mais sabida das coisas do mundo do que todo mundo.
Era do costume da velha Caroca ajeitar sua cristazinha de gogó como se fosse uma exarpe e passar as tardes quieta, matutando e batendo seus próprios preguinhos, mas de quando em vez pegava alguma galinha por aí para ensinar uns bocados de coisas, passar recomendações e às vezes até alertar um caso perigoso de engorda ou baixa botação.
E foi numa tarde dessas que Giserda aprendeu mais do que tudo o que sabe. Além das peculiaridades anatômicas das minhocas, aprendeu sobre seu Compromisso Inter-espécies de Fecundidade, Planejamento de Ciclos do Cio, e tudo o mais da burocracia cânjica da Previdência Ornitóptera. Foi instruída nas artes femininas das galinhas, nos cuidados com o corpo, no tratar dos pintinhos e principalmente os detalhes da excelentíssima arte de chocar. Mas além desse conhecimento técnico ao qual todas as jovens galinhas são condicionadas, um laço mais forte embaraçou as penas das duas, Caroca e Giserda ,que passaram a passar mais tempo passeando juntas. Tempo em que Caroca passava, a maior parte do tempo, passando seus conhecimentos para Giserda, que muito pouco entendia mas muito muito escutava e apreendia o máximo que podia.

Agora, Giserda, se espantava por lembrar da velha d’Angola, porque também não costumava se lembrar de nada, só muito de vez em quando lhe brotava uma memória sem espora nem crista de coisas que ela já nem se lembra o quê. Mas ela sentia que algo estava mudando, talvez fosse aquilo a que chamam primeira choca, ela já estava mesmo na hora, quase no seu vigésimo semanário, quase completando sua tão esperada maturidade. Será que atingiria sua expectativa de bota? Cem ovos por um ciclo de vida tão breve parece uma coisa desgalinácea, tipicamente humana...
Enquanto chocava esses pensamentos, uma outra coisa chocou-se contra sua cara, e ela sentiu trincar-se a primeira rachadura no seu bico.

-SAI FORA, BIXO IDIOTA

Sentiu-se como se seu cérebro tivesse chocado,
os óio chacoalhado,
as oreia cacarejado
as idéias coalhado.
Crânio rachado
Crachado.


sSSAAAI

Sentiu mais susto que dor,
mas susto também dói um pouco
Suspirou, mas em surto e torpor
Num cargarejo rouco
Foi mas voltou
Pra se roer mais um pouco

Dum clarão que divide o antes e o depois ela reacordou, e só aí atinou que acabava de levar paulada de viola na ponta do bico, e só aí se desbaratinou e desatou a disparar na pauleira em volta da goiaberinha, e só aí é que desatou a correr na direção do Grão Celeste.

E o tampo enorme de violão passou assobiando pela sua cloaca enquanto Giserda fugia toda desparatada. Mas desparafusou o redemoinho das idéias e pôs-se a colocar tudo de volta no devido lugar dentro da cabeça logo que se viu longe do alcance das violadas.E avistou seu agressor, e se recompôs nas esporinhas, e encheu o bico prá retrucar a agressão como quem pede seis ou nove, sabendo que ouviria em troca um generoso:
cAI marreco

E cacarejou como deixando claro que ali não tinha três tento, que agora valia tudo, que fosse lento, mas longo, largo. Cacarejou como se anunciasse ao Último Dia. Disparou na direção do oponente lançando seu brado, e cada pena sua vibrou no seu cacarejo, porque agora cacarejava com muito mais suingue devido ao ferimento que rachou seu bico:
-Busli-bap, budabuda-sei!-

De repente irrompeu-se a fuga da galinha e ela se descobriu com um novo dom: agora podia cantar, não aquelas bostas que cantam os galos pra acordar o Grande Grão e pra cantar de galo. Dizem que o galo canta, mas poucas coisas se parecem menos com um cantar do que aquele ruído estrangulado que vem com o Sol que nasce a cada dia, a cada aniversário, sendo eternamente regurgitado e re-regurgitado, como que fosse hereditário (os Exu que me perdoem).
Sem saber muito bem o mais ou porquê, nem mesmo com que coragem que foi, Giserda, de contente e estasiada com si mesma e aquela alegria que ganhava asas no seu bico, voltou à goiabeira onde agora aquele sujeito que outrora afugentara ela se sentava, rabiscando acordes soltos na viola, e ela desfilou na sua frente mandando uma suingueira sentida só na capela, depois ponteando a harmonia solta das cordas com melismas de montanha russa e assim, sem nada falar, aquele homem de cara simples, camisa clara e pés pretos, os olhos muito mais claros, desculpou-se da Giserda em C maior, que empolgadíssima e nem se lembrando mais da ofensa trinou a introdução de uma nova melodia.
E assim foi, fez-se uma canção de bicho e de gente que ecoou no terreiro inteiro aquela tarde, e cada galinha que ouvisse os acordes daquele berreiro se agitava,primeiro cacarejava, bicava, cagava, cuspia, se depenava, depois atacava os galos, os gatos, os gansos, grasnava, quebrava os próprios ovos, quebrava os ovos das outras, ciscava no cimento e se debatiam num espetáculo esdrúxulo.





Nesse dia viu-se a coisa mais inacreditável que se conta pelas bandas de cá, por toda a região as galinhas em convulsão, e até alguns galos mais aviadados, logo se promoveram a galinhas em resolução e, todas juntas, todas fortes se tornaram galinhas em revolução. Deu-se o dramático episódio da Derocada da Avicultura.
O Movimento Avilucionário logo ganhou simpatizantes e adeptos entre os patos, marrecos, galinhas d’Angola, carijós e apoio da grande maioria da comunidade ovípara doméstica.
Apesar dos esforços humanizantes dos avicultores, que variavam da má fé à boa e velha ultra-violência, o Movimento resistiu, adquirindo o monopólio do mercado de ovos em todo o estado.
Porém, com a ascensão de algumas galinhas dentro do sistema econômico, logo as dissidências começaram a minar a força imponente da União Comercial Avilucionária, que dividiu-se em duas facções: A Frente do Bico Fendido, que defendia práticas de botação em massa por cotas anuais controladas pelos sindicatos e a Granja sem Canja e Aliados, que, tendo conquistado grande estabilidade no mercado de ações, defendia o neoliberalismo. Nos nichos de mercado gerados pela concorrência entre as duas facções da UCA, instalaram-se comunidades alternativas de galinhas carnívoras, vulgarmente chamadas de “vacas-loucas”.
Essas comunidades marginais, muito mal vistas pelo resto da sociedade avicultora, mantinham estreitas relações com morcegos e abutres que foram se consolidando pelo comércio e transporte de carnes e pelos interesses em comum entre essas espécies.
Novos tratados inter-espécies foram consolidados, a velha ordem mundial que mantinha as coisas em ordem agora não vazia valer mais nenhuma ordem, e foi ficando obsoleta frente aos avanços nos mais diversos campos da cultura, tecnologia e das artes que a UCA vinha patrocinando.
Neste fogo-cruzado das corporações Giserda foi esquecida num poleiro de quinta categoria do Projeto Granjapura recebendo uma pensão de merda pelo seu silêncio vitalício que mal dava pra sustentar seus vícios. Ela apostou no seu dom de cantora mas tudo que conseguiu foi algumas noites deprimentes em cabarés decadentes e outras ainda piores cortejando um ganso metido a flamingo com pretensões de produtor em ninhos de fibra sintética.
Adotou o nome não muito artístico de Gilda Lilda, e percorreu muitas granjas de baixo nível atrás do homem da goiabeira, de quem já nem bem se memorava das feições. Semanário atrás de semanário, ela se via cada vez mais parecida com um frango à passarinho. Abandonada por si mesma, cantou, cantou, até sentir dó de si, tomou um calmante, um excitante e ensaiou seu próprio fim afogada em uísque de milho.
Foi em uma dessas noites, penteando as últimas penas secas num camarim fedendo a cloaca, que desenhou em batom-de-bico, num espelho rachado, seu último repertório. Fazendo um esforço sobre-galináceo, repassou todos os segredos enterrados no fundo mais raso da cabeça, cada uma das nuances do doloroso processo da choca e trocou sua última gota de saber por uma dose fatal de alegria sintetizada. Em um devaneio alucinógeno deu cada detalhe da fabricação dos ovos a um coelho sem vergonha que se aproveitou da debilidade de Gilda. Profanou o segredo milenar que cada um dos ovíparos guardou a vida inteira, a tanto custo. Traiu sua espécie, família, gênero, número e grau por uma morte pacífica.
Mergulhada no caos das sensações Giserda passou a eternidade relembrando sua música no paraíso da galinhas, sem dever nada a ninguém, enquanto os coelhos tomavam o poder econômico com a produção, muito mais rápida e eficiente ( pois todos sabemos da fama dos coelhos no que diz respeito à produção e principalmente reprodução ), de ovos de chocolate.

Mais uma vez, a ordem das coisas foi totalmente reformulada, onde lia-se penas e bicos leu-se olhos vermelhos, orelhas compridas e pelo branquinho. Tudo caiu novamente no imutável ciclo das mutações constantes, reconfigurando-se a cada segundo. Em pouco tempo a aparentemente inexorável dominação econômica que os coelhos impuseram teve o mesmo destino de todos os impérios que o precederam e sucederam: sob os governos de Roger Rabbit e Pernalonga ruíram todos os pilares que sustentavam a lógica de mercado ovípara e novas regras vieram para restringir a realidade aos moldes aceitáveis.
Porém ainda hoje, resquícios destes tempos conturbados, em que vivíamos sob a constante censura dos ovos, regulam nossos costumes. Daí vem a expressão “quadrado” como característica condenável além do estranho costume de, neste período de Páscoa, consumirmos ovos de chocolate distribuídos por coelhos, por mais que isso soe totalmente imbecil.


Telônios, pela libertação da galinhas
(uma homenagem a Tito Duarte)

segunda-feira

Fudido com "O" - Terceiro Fascículo

O PÁTIO DA IGREJA

Tem dia que é Sol.


Prum lado e pro outro. Tem um que é Sol, porque brilha, reluz e aquece. O que é verde, amadurece; o triste: esquece. Tem outros que é Sol porque o bagúio frita agente, dá suadouro de derretimento, e é aquele inferno.



Hoje tinha sido assim: inferno frito. A impressão que eu tenho é que esse Sol todo na cabeça, da gente, cozinha os miolos. Amolece as idéia. Agente se amoqueca todo...



E é hélio, se impondo sobre e em todas as coisas, como se não admitisse nada que não fosse ele mesmo. Ofusca, contamina de luz.

E é aquele bafo, que inverte as vontade do povo. Aquele desejo que se inspira no suor dos outros. Uns corpos se exigindo, sem panos.Aí, às vezes é bom; se se tem a quem.

Se não, é só desconforto prá atormentar o cidadão.


No teto, tinha ventilador. Além, fora, a noite. E dentro, calor. Mas dentro, ainda mais dentro, noite de novo. E frio, um pouco de frio.


Mas como eu dizia, chamou-me aquele sujeito do balcão, baforando seu "charuto de coxa", e ele era um hiena.

A fumaça fedia; expandia sua presença pelos quatro cantos do bordel, onipresenciava sua existência naquele ambiente.Ele, me chamando, passou a falar, mesmo não se apresentando nem nada, umas coisas. No supetão logo lançando, atrás daquele fumo forte, as coisas, em tom rouco que arroupeia:"...do Norte que vai um dia vir lobo... ...olhos de sangue nos olho... ...o tu que vai de ter de escavoucar as força..."


e outras bobagem, sempre com esse jeito de quem tá sabendo das coisas, até de mim, mesmo, que eu num sei... aquilo foi me irritando:"Porra, tio, vai se foder!" Lancei, já saindo fora. Daí que ele foi me segurando pelo braço e pôs os olhos dele bem lá no olho dos meus e desbaforou um tanto, grosso, daquele fumacê danado bem na minha fuça.


Tonteei.


No meio daquela neblina súbita, se desprende da minha garganta uma frase cambaia:

"Achque preciss... banheru!"


As ânsia.


A lá que fui, me amparando na coisas e nas pessoas. Pronto, já estava mal visto naquela boatizinha fora da linha. E nem deu nem vinte minutos que eu tava lá...




Carregava a minha cruz, que era alguma coisa lá dentro, querendo me escapulir pela goela. E andava sobre a água, o mijo, os gorfo, e tudo o mais que se encontra entre uma plaqueta que assinala WC e o vaso sanitário.

Confessionário.


Me ajoelhei solene e capenga prá fazer minha oração, e aquilo tudo catapultou-se bucho afora da minha pessoa.


PREPARAR PARA ENTRADA NO HIPERESPAÇO


Vulcanizei-me as tripas com brutalidades e cruezas. A maior confusão. Respingo e ricochete.


*.*.*.*.* estrelinhas.


Abrindo as pestanas, uma coisa primeiro me alarmou: A tampa, imbecil! Tem que levantar a tampa da privada!


Óquei, isso já foi uma merda, por causa que a gorfada, no choque com a privada fechada, expandiu-se até os horizontes da existência, até onde alcançava a vista, tingindo o cenário com tons (e isso aí é que mesmo mais me alarmou) esverdeados. Reluzia em gosma a toillete. A cabine rescindindo a ânsia:


Fosforescia...



(ainda tem mais... )


Telônios
imagem gentilmente cedida por autor que preferiu manter o anonimato dado o teor ilícito do objeto representado

quinta-feira

Hora em que ela encaixotava a cara, o bar ia fechando.


As luzes ainda caíam muito sem-vergonha, indo e voltando e
sombreando os vultos, carregando as moscas. Pelo chão, os cacos quebrados se abriam piscando pras mesas, ruminando debaixo de um teto que dorme toda noite. Enquanto isso, os copos gostavam de ficar rodando em volta do ventilador.O bar ia fechar.


De vez em quando, quase sempre em noites quentes, um homem muito antigo conseguia um lugar para sentar, se embebedar nesses olhos...

Mas no dia seguinte, era sempre a mesma sede, coberta de pó e sem teco de sombra pra fugir do sol. Sede cor de amarelo, a ponto de ver o próprio corpo virando
água salgada.


Porre de mágoa.


Carolinha

Fudido com "O" - Segundo Fascículo

MATANDO AULA

Além do mais, eu não tinha nada a perder, fora aqueles 50 centavos. Minha dinidade ficara sobre a escrivaninha de um superior, todo inchado de si, que se sentiu pessoalmente ofendido por conta de um par de linhas do meu Relatório Parcial de Atividades. Verdades impróprias que constavam no item 7c) Obesrvações Pessoais. O amor próprio, perdi aos poucos, enquanto me distraía com as rachaduras na parede. E tantas outras coisas, perdidas nos cantos da vida, que me reduziam àquele presente: de frente prá mim mesmo, no espelho rachado da porta de um bordel.

Entrei e era mesmo um bordel. Comum até, não fora a aura espessa de irrealidade que carregava o ar. Aura fruto do cruzamento da luz da entrada (doirada!)com a penumbra rubra de dentro (carne, sangue, cimento).
Pensei no que mamãe diria me vendo metido naquele lugar. Provavelmente aprovaria, afinal era um típico puteiro familiar: luz baixa, acomodações razoáveis, bebida batizadíssima, para evitar manguaça, tanto da parte dos clientes, quanto das profissionais.

Atrás do balcão, um gambá de pelo ralo servia um limpa-goela e esses drinques para mocinhas.Fui de cana mesmo.

GLUP!

Ele me olhou, desconfiando de que alguém como eu, se tinha algum com que pagar a birita, na certa não teria que bastasse prá bancar uma noitada com uma das lindas garotas que por ali pairavam, à espera de um sinal do velho gambá (depois fui saber, se chamava Janjá) para acometer a clientela.

Não me importei.

A moeda rodopia no ar: coroa.

Outra: GLUP!

Enquanto a talagada daquela aca ecoava, ricocheteando no meu crânio, observei um camarada que vinha bordel adentro:Veio entrando, gingando entre o cambaio e o desafio, entre o charme e o funk.
A princípio julguei ser outro gambá. Foi quando ele se virou, disparando um sorriso para ninguém (ou para si?) que se desfez em um riso. Riso que acabou desaguando em ganidos e guinchos, suaves e pertubadores. Num meneio e meio da cabeça angulosa, se revelou uma hiena, dessas bem esfoladas. Uns olhos bem fundos divididos entre o ouro da luz e o ocre dos fundos.

A essa altura, bem pouco me importava com meu futuro, que outrora perseguia obcecado. O jegue maldito, seu papagaio charlatão e aqueles papelinhos... já começava até a ensaiar uma certa repúdia àquilo tudo:"Vê se pode! Um burro e um papagaio de merda querendo me dizer o que fazer dessa minha vida!"

A hiena sentou-se no balcão. Não exatamente ao meu lado, mas próximo o suficinte prá me intoxicar com seu silêncio; escarnecia. Isso e uma caatinga azeda, própria daqueles que não se incomodam em incomodar o alheio, espraiavam sua presença pelo cabaré.

Tirou qualquer coisa do bolso do paletó. Um embrulho pequeno em papel alumínio que ele abriu cuidadosamente sobre o balcão. Naquilo se ocupou. Minutos. Muitos.



Eu eu só ali, olhando, tentando perceber qualquer coisa. Me revirando atrás de uma razão para estar ali, além do fato de não poder sair sem acertar as contas e não dispor dos arames para tal.Pensei novamente que acabaria me acertando mesmo é com o gorila de gravata da porta. Me acertando com ele, ou ele me acertando...

Além do mais, supondo que saísse, para onde ir?

Prá onde ir?

Prá onde?

Ir?

"Vem prá cá, vem prá cá!" resoou um voz quase familiar. Olhei e era o hiena, que agora respirava através de um charutasso, dos fortes, que ele manufaturara enquanto eu me distraía com os desenlaces improváveis daquela cena.

Improváveis? Era pouco.

Mal sabia eu, o que viria...


...mais suspense (já tá na hora de acontecer alguma coisa, né?)...



Telônios
Imagem: Coisas n° 2
Foto do Ze

terça-feira

Foi assim

Buscando as estrelas encontrei
um seixo
um chão no queixo
Carolinha

quarta-feira

Outra uma mínima

No céu
De casaca
O urubú rege o vento
Magrão
Fudido com "O"- Fascículo I



Tem uns dia que são foda!



Prum lado e pro outro. Tem dia que é foda, foda porque foi bom. E tem dia que é foda, foda porque agente só se fode. O dia todo.



Fim do dia.



Hoje, por exemplo, foi foda. Do segundo tipo. Tanto foi, que de tão fodido que eu tava determinei que precisava foder com alguém antes que o dia seguinte despontasse. Dar o troco no mundo.



É, aquele dia tinha sido uma bela bosta, mas não é isso que importa porque o bicho pegou, mesmo, foi à noite:



Sem grana prá pegar um bonde (só tinha uma moeda, só), resolvi bater perna até chegar não sei aonde. Aonde, onde quer que fosse, eu ia foder com alguém. Foder bunito; o suficiente prá saciar minha ira e ainda um pouco mais, que é só prá eu sentir vergonha diante do espelho do banheiro, quando viesse a manhã seguinte.
Um pé-após-outro dei de cara com uma feira, que saltou em cima de mim, subitamente, com seus cacarecos e velharias expostos na Praça da Beneca.



¡PEIXE E FREGUESIA PANELA E PASTEL JACA FRESQUINHA TEM ABACATE BARATINHO
DONA!


Se esgueirando por entre a gritaria, uma melodia protestava contra aquela massa retumbante de reclames. Entres os feirantes e comprantes, cada qual com sua espécie: rinoceromnte, tartaruga, ema, codorna, um esquilo; destacou-se o par de orelhas de um jegue, não que fosse burro, eu não saberia dizer, era um jeguinho com jeito de jeca, arrastando pelo calçadão da praça um realejo bem banguelo. Que cantava, a alma longe dissipada.Como não poderia deixar de ser, um papagaio acompanhava o burrico do realejo, fazendo aquilo que fazem os papagaios e anunciando o seguinte enunciado: "Vamo chegando minha gente, que o barato é quente. Seu futuro custa apenas um real. Aceita tique"



Apertei na palma da mão a minha moeda (era de 50 centavos, só).



"Taí!" Falei. "É disso mesmo que eu tô precisando: um futuro. E resolvi atravessar a rua, comprar meu futuro, e então eu veria quem vai foder quem nessa merda!" Uma euforia insuspeita brotou na minha cuca, sob a perspectiva de que, em breve, eu teria meu futuro. Depois era só segui-lo. Fácil como achar a entrada do labirinto, conhecendo a saída.



Ledo engano.



Fui obrigado a esperar na esquina enquanto uma vazante incessante de automóveis zunia na minha frente, cada um louco prá me arrancar um pedacinho, os bastardos. E aquela muvuca do lado de lá. E o meu futuro boiando na multidão esperando que qualquer um venha e o roube, tirando de mim meu direito inalienável (ahã..) à minha própria existência.



Finda tarde.



E eu ainda preso naquela esquina, perdido nessas bobagens metafísicas. Os carros passssssssssssando. O crânio pensando, pesando...



O canto do realejo foi minguando na medida que meu futuro se distanciava de mim, praça adentro, feira adentro. E eu naquela esquina. No movimento imenso da avenida lhe perdi. Quando juntei coragem prá meter o peito no meio da rua, só via as pontas fiapadas da orelha daquele jegue, pairando sobre mil cabeças. Mas quando alcancei a outra margem da rua, costurando entre os carros, já nada via. Quando muito, ouvia um trinado relutante, que brotava da garganta do realejo distante, cada vez mais.



Uma moeda, asfixiada, na palma.



Ok, antes eu tava puto. Agora eu fedia nervos. Muita gente, gente demais. Aquela algazarra dos diabos me estuprando os tímpanos enquanto eu tentava esticar o ouvido prá ver se achava um barulhinho, qualquer fiapo que delatasse a posição daquele jegue e do loro, guardião da minha posteridade.
Entre uma promoção de peixe podre e a queima de estoque de maçã argentina, fisguei a voz do papagaio já descendo a ladeira, em direção aos bairros baixos, a Baixaria, para onde escorrem os restos e os rejeitados quando cai a noite.



Cai a noite.



E eu naquele passo ridículo de quem não encontra dignidade o suficiente para correr nem tranquilidade que baste para simplesmente andar. Ladeira abaixo, seguindo meus ouvidos. Perseguindo o mulo e seu loro, até que os avistei dobrando uma esquina. Dobrei o passo no encalço deles e tive tempo de ver somente o calcanhar e calça jeans do burro (e o rabo, claro), entrando por uma fenda maliluminada.



Cheiro de cachaça entornada e mijada preenche o ar.



Estaco em frente à entrada: um corredor escuro e curto se estende em três degraus que sobem até um portão de grade, além do qual a escada segue. Sobe até o inferno. Do portão em diante, a penumbra azulada que cobre a noite da Baixaria dá lugar a uma luz dourada que cora as paredes e a escada, com a promessa do lenitivo definitivo para aquele que ousar galgar cada degrau.


Ousaria, eu?

A moeda rodopia no ar: coroa."Ousarei" disse.


E ousei.

Com era de se esperar, o portal se abre com a maior facilidade. Ao cruzá-lo, atravesso um véu de breu, minha existência pisca, suspensa por uma fração de segundo, eterna. Aí a radiação áurea abraça meu corpo, aquecendo meu espírito. O perfume de mil flores engrossa a atmosfera.


"E agora, panaca, vai entrar nessa espelunca sem um puto? Puteiro, por mais barato que seja, não se paga com um níquel" pensei. Mas logo dispensei esse pensamento. Afinal, eu já tinha ido até ali, atravessado o portal. Na pior das hipóteses um gorila da segurança ia me dar uma surra e me pôr prá fora do cabaré na base do pontapé. Nada além do normal.


Ledo engano. De novo.


O que rolou daí em diante, lá dentro, tá longe de normal.

Além.



...continua...
Telônios
Imagem: Portal
Foto do Ze

terça-feira

" Trata-se de um cara de de + ou - uns 40 anos,
muito paranóico e ao mesmo tempo de
uma maginação bem sólida."

Nas palavras do Ze, o autor do desenho.

Magrelo faz um Safari

no mundo de pedra
meu corpo é de pedra,
minhalma é de pedra,
meu sêmem >> minérios
e farão filhos de pedra
Minha mente de pedra
não consegue pensar noutra,
que ficar louca de pedra
Engulo pedra, cago pedra
e não consigo ver nada
com meu olho de pedra
que não seja pedra

E se não tiver
uma pedra no caminho,
desconfiarei.

magrous

Enquanto valer a pena, não jogarei a pena fora. Se sabe,
sonho que se sonha junto é a realidade...

segunda-feira

Mínima duas

Nem tudo está perdido
Cães, crianças e mendigos
Param pra falar comigo

Magrão

Mais uma mínima

Ócio?
Esse negócio
Prá mim é ótimo
A mente se estende
Na rede
Sempre que posso
Como se fosse fóssil
Como se fosse fácil

Telonios

CARTA AOS VISITANTES (LEIA ISSO)

Legal, taí esse tal de blog, agora eu nem sei bem como dar prosseguimento ao barato, tudo que sei é que, de quando em quando, vai ser lançado alguma coisa aí pros povo dar uma olhada.
Você lendo, gostando ou não, faz favor de comentar (só dar uma clicada no palavra "comentário" logo ali em baixo) preu saber pelo menos se alguém tá lendo essas coisa.

Essa página aqui tem a função de publicar toda e qualquer coisa (dentro das nossas possibilidades técnicas) que nos pareça interessante (para vocês) sob o estandarte do movimento cultural urbano anônimo.

"É feia mas é uma flor
atravessou o tédio, o nojo, o ódio"

Vai daí também que, qualquer membro da comunidade que vivemos (Sampa, São Paulo,Planeta Terra...) que quiser manifestar-se, ou estourar suas espinhas na lente das câmeras, fica à vontade. Se quiser mandar qualquer material pá nóis é o seguinte:
teo.e-meio@bol.com.br

Se quiser postar direto no blog, o login é meu e-meio e a senha é 100171 (sacou a piadinha?), mas faz favô de respeitar, se não agente muda a senha e perde a piada...

unicação.com

e nas palavras imortais de Hermanus Nielsen: Abraxxas

Telônios

Mínima uma

Pra que afeto ?
Se formam o par perfeito
A Mulher Objeto
E o Homem Abjeto

Magrão

quinta-feira

Desce o Pano

Depois da calmaria, sempre vem a tempestade.
Depois da cobertura, sempre vem o recheio.
Depois da bola, sempre vem uma criança.
Depois da putaria, sempre tem um cigarrinho.

A sabedoria popular tá infestada de causas e consequencias siamesas, paridas e formadas em parelha, feijão dá em peidorreira braba, e não há quem diga que não.
Hoje, porém, não houve consolo sábio, para nosso acalanto. Se ontem fomos cinzas, que papel nos resta hoje?
Cá prá mim, só resta tirar os fiapo de jaca das frieira e esticar o pescoço prá além dessa manguaça.
Ressaca dos pés à caveira. Ressaca moral, somática, espiritual, econômica, material, e o que é pior: em escala nacional!
Anteontem fui labareda e brasa, ontem ardi em carvão até me saber em cinzas, mas e depois?
Sopraram debaixo dessa cinza, mas lá não tinha lenha prá queimar.
Um vento vadio invadiu a varanda, embalando a rede que me amparava. A segunda baforada, ainda mais agradecida, acariciou a dor daquele calo de estimação, que andava especialmente reclamão. A terceira lufada porém, espalhou as cinzas da quarta-feira porta afora. Porta Bandeira, Rainha? Só no ano que vem...
Hoje e amanhã: agente gasta o branco do dente na quina do batente.

E como dizia o poeta: começou o intervalo insuportável entre o carnaval e o ano novo.

Cancelamento de outorga

Esse papo de cair na groovera devia ter dia certo, acertado. No meio da semana fica complicado pro cidadão mediano. Esse negócio vai acabar me demitindo.
Porra! Até que não seria uma má idéia...

-Opa! bom dia, senhora chefa, como vai?
-Vou muito bem, Carlos, obrigada.
-Tá bem? É mesmo? Engraçado, sabe que não parece? A senhora está com uma cara de cú que eu tô prá ver igual!
-D...!
-Me desculpa estar sendo indiscreto, atrevido; mas e o maridão, tem comparecido?
-E...!?!
-É porque, me parece, que a senhora carece é de tomar uns bom tranco nas anca, que é prá se aprumá.
-Mi...!
-Você sacumé, mulher é foda. Se não fode direito, já dá prá pentelhar os outro sem motivo nem razão...
-T...#!?
-Se o teu patrão tá meio mole, sem interesse, de duas uma: ou tá broxa ou tá com outra, e você tá fazendo a de trouxa.
-Id...
- Olha, no seu caso, eu ia pela segunda opção...
-Oh!
-O que?
-Tá Demitiiiiiiido.

No fim das contas, tenho que respeitar a véia. Durou bem mais do que eu esperava...

quarta-feira

Terça-feira – (Yurous)

Naquela época eu costumava freqüentar o centro cultural. Sem trabalho e entediado, passava as tardes perambulando por ali, enterrado no fundo da gibiteca ou tentando entrar em alguma aula de graça. Vez ou outra, sentava numa mesa do mezanino reservado a desenhistas e jogadores de RPG e ficava ali, rabiscando alguma coisa e destilando minha antipatia por japoneses cheios de espinhas que gritavam e jogavam algum jogo estúpido de cartas na mesa ao lado. Eu gostava daquilo, de estar ali entediado naquele refúgio para aquele tipo de escória da juventude. Eu era um deles.

Foi numa Terça–feira. O sol abafado entrava sem piedade pelas janelas, sem dar chance de refúgio em lugar nenhum. E era pleno agosto. Resolvi não me deixar assar como uma merda de um frango estúpido e saí andando pelo espaço do centro cultural, sem rumo algum, mais como uma forma simbólica de resistência. Ia assim distraidamente imerso em blasfêmias mentais quando um cartaz me chamou a atenção. Um cartaz não; na verdade apenas um nome escrito nele. Era o cartaz que anunciava algum tipo de evento, do qual participaria a banda cujo nome me chamou a atenção. Eu nunca tinha escutado o som da tal banda, mas fontes relativamente seguras tinham me falado bem dela. Não, eu não lembro o nome da banda, e tive preguiça de ler do que trataria o evento, achando mais fácil ir até a sala onde estava acontecendo. E fui.

Quando cheguei, o dito evento estava pra começar. E era uma ante-sala cheia de gente em pé, conversando em grupos separados e aguardando o começo. Logo na entrada, um cara magro e muito feio me chamou a atenção: tinha a barba e o cabelo compridos e muito ensebados, com se estivesse a meses sem um bom banho. Só podia ser um cara da banda. Perguntei. Era. Legal! Tentei levar o papo adiante, quem sabe até descobrir que merda ia acontecer ali, mas ele não estava sendo nada simpático. Tudo bem, eu também não costumo ser, mas pelo menos eu tentei... Sem nenhuma resposta clara, tentei adiante. Logo me deparei com outra horrenda figura que sem muito esforço deduzi ser também da banda. Perguntei. Era. Esse seguia o visual da barba e do cabelo, mas não se parecia com um doente terminal como seu companheiro, o que não fazia dele menos feio. Era albino e pelo visto sofria de alguma mutação, porque não tinha um dos olhos, sendo que o que lhe sobrava era pequeno e amarelo. Esse cara foi um pouco mais amigável comigo, apesar de não ter conseguido me fazer entender mais do que se passava. Ele veio com um papo complicado sobre o conceito espiritual do evento enquanto eu só conseguia prestar atenção era naquela cara com aquele olho.

Começou o evento. O povo foi se aglomerando na entrada, eu fui atrás. Notei do meu lado um cara muito estranho, magricelo com uma barba bem rala, mas comprida. Aí percebi que não era um cara. É, era uma mulher. Uma mulher barbada. Argh! Fui um dos últimos a entrar e fiquei meio atrás. A sala era pequena pro número de pessoas e ainda por cima o chão tava cheio de coisas distribuídas irregularmente pelo espaço, umas mesas, uns cavaletes, sei lá. Não dava pra se mexer muito. Que merda, pensei. Nem sinal da banda. Mais merda ainda. Comecei a ficar preocupado. Eu não tava entendendo nada e todo mundo começou a discutir alguma coisa e eu não sabia o que era e nem porque todo mundo sabia o que tava acontecendo menos eu. Tentei mudar de lugar. Não dava pra fazer isso sem atrapalhar um monte de gente, então eu atrapalhei. Nessa tentativa, vi algo que me impressionou. Era a mulher mais feia que eu já tinha visto na vida. Muito alta, muito magra, com um cabelo preto escorrido na cara. Andava meio curva e tinha as mãos e os pés enormes. E um nariz enorme, um puta nariz. Na boa, era mais feia que a bruxa da Branca de Neve. Mais feia que o Joey Ramone. Fiquei com medo. E aí notei que ela tinha bigode. Um bigode bem considerável e até um pouco de barba, tipo as costeletas e no pescoço. E ela tava bem perto de mim, acho que dava pra encostar! Peguei o tortuoso caminho de volta entre as pessoas e objetos, e nisso todo mundo começou a dançar. Sei lá como, do nada, começou aquele monte de gente a dançar, sem música, cada um no seu ritmo, sem que ninguém dissesse nada. Aquilo foi demais pra mim. Fiquei muito puto e saí fora dali. Na porta, ainda vi mais duas pessoas de costas que eu achei que fossem mulheres, mas mais perto deu pra ver que as duas tinham barba, a mesma barba, pouco pêlo, mas comprida. Desviei delas (ou deles...) e saí de volta pra ante-sala. Eu sabia que ali a esquerda tinha um balcão, onde alguém ia ter que me explicar alguma coisa. Fui pra lá. Eu tava puto. Cheguei no balcão, mas nem consegui perguntar nada. Atrás dele estavam sentadas duas mulheres. As duas tinham barba. Levei um choque. Eu não agüentava mais um minuto naquele lugar esquisito do cacete. Virei pra ir embora e dei de cara com mais três mulheres que, claro, tinham barba, sendo que uma delas vinha na minha direção, rindo e falando comigo. Puta que pariu. Não ouvi. Nem pensei, só corri; corri rápido pra longe, bem longe, embora. E estava feliz por ter chegado.

Analgesia

(para ler ao som de Judas Priest)

São Paulo, 15 de janeiro de 1992.
7:45 horas

Os protestos de sua coluna germinaram com cara de quem vai longe, bem naquele ossinho internadegal de nome difícil, fim do fim dum rabo, herança do macaco. Daí percorreu a lombada da sua lomba a pontada safada, deslizou nas primeiras vértebras e seguiu espinha acima, na rabeira da medula.

Como num elevador panorâmico, Dona Dô observou com o mesmo velho espanto o vale dos intercostais, com seus brônquios e bronquíolos, os rins no jeito de uva passa, um pâncreas, o Bixiga, lá bem embaixo, quase transbordando na área de saneamento básico e nas bolas.

Da coluna vertebral à cervical, desemborcaram no crânio os protestos. Aquela pontada que nasceu no submundo da anatomia animal se multiplicou estourando num bigui bangue de alfinetes, como se fosse o peido de um porco espinho acuado e sem cú. A agonia em cada agulhada atravessando o cérebro prá (pá!) fincar seco no osso de dentro do lado de lá; por exemplo: um preguinho de dor despertado no maxilar alojaria-se no cucuruto oposto, no alto do crânio, sempre atravessando a massa cinzenta e atabalhoando, engavetando o tráfego dos neurônios ruidosos costurando pelas ligações sinápticas.
Quando o primeiro feixe de pontas finalmente lancetou sua retina Hitô abriu os olhos e se recompôs da dor de levantar.
Olhou pela janela: os deuses castigavam o mundo com sua raiva molhada. Nem bom, nem mau, nem feio; nesta manhã o Sol não nasceu para ninguém, e se o Sol não nasce como você sabe que é dia?

Lá fora, infinitas farpas reluzentes diluiam os contornos da manhã.
Será que era manhã?


Amanhã?
-Hã...
Ã-hã
Amanhã.
Amanhã eu vou...
Amanhã eu vou e resolvo tudo, mas hoje eu não vou nem fudendo!-

E assim foi. Hitô não foi trabalhar. Se tivesse ido, a estória seria muito diferente:

Desse jeito mesmo: sem menos nem mais pretensões ele iria prá aquela velha esquina, estenderia na imperfeita geometria da calçada um losângulo de lona, surrado de sujo.
Como uns muitos tantos outros dias; comuns muitos mais do que contáveis: contados.
Como esses e nesses mesmos, ele recostaria a carcaça cambaia descomposta na lona, no calçadão, naquela quadra, naquela rua.
Na Rua.
Aí era só estender um caneco –mais simbólico do que útil, mais reclame que ferramenta- e brindar àqueles que (almas caridosas!!!?) contribuíam com um trocado para a miséria do próximo, quitando mais uma mensalidade do seu seguro contra remorso (naturalmente sem carência).

Dona Dô, assistindo lá de dentro, das entranhas do bonde em lento movimento, a uma das infinitas repetições desta mesma cena -o moço, já não tão moço, manco, chegando manso, dispõe seus pertences na lona espraiada, e começa o expediente- correria certo o risco de logo sentenciar: mendigo pedinte.
Mas Dona Dô, sendo velha sabida que era, doída, doida e vivída sabia: Aquilo que Hitô fazia, no dia-após-dia, não tinha nada de mendicante, ou se tinha era mesmo só aquele tanto de mendicância que todos temos (e não temos?). Aquilo que fazia Hitô eram negócios, como um outro qualquer negócio, onde circulam déficit e superávits, e mais déficit. Câmbio monetário. Um esperto, um otário. Um oferta, outro procura. O que havia ali de diferente, simplesmente, era o teor da mercadoria: vendia-se alegria.

Dona Dô retira da bolsa de feira colorida, desbotada, um suculentoso caqui e desescancara uma mordida lascada na carne escarlate, sentindo um gominho muito sutil, quase cartilaginoso, completo sabor e satisfação. A boca se inunda, rubras cascatas larga garganta abaixo, lava doce na bochecha, lava a alma. Na segunda mordida a véia gorda surpreende a metade de um vermão saculejando a rabeta no fruto proibido. Antes de imaginar em que esquina escura estaria alojada a outra metade, meio mastigada, da sua companheira solitária, Dona Dô dispara, quase pare, aquilo tudo de caqui que por ali entrara. Num pulso liso como entrou, aquela fruta escrota cortou o ar janela afora, estirando-se violentamente no meio-fio de um beco escuro, monturo que visitou brevemente o ventre daquela infeliz agora se espraiava pelos redutos mais diversos.
No ponto seguinte Dona Dô se vê obrigada a descer do bonde que , como toda Quinta-feira, montava para voltar da feira com compras que durariam exatamente até a próxima Quinta-feira.

Indiferente a Dona Dô, à sua própria dor, Hitô comercializava aquilo que somente lhe tinha sobrado, e tinha sobrando: sua felicidade . Assim passava a vida e a rotina, sentado em um mesmo ponto, sob a fachada cruel e irônica de um Banco do País, tentando vender seu peixe. Se recebia qualquer quantia, retribuía com um sorriso, sincero, repleto. Oferecia doses de contentamento aos necessitados e com isso comprava suas camisas, coleiras, muletas. Remédios do um e do outro tipo.

Maldizendo as tantas quantas pragas que sabia, Dona Dô fez se ouvir no meio Rua, amaldiçoando vermes, frutas e quitandas de toda sorte. Distribuindo sortilégios.
Dispôs em fila indiana, ali mesmo, tudo quanto era descabimento de dizeres que ainda cabiam na sua cabeça.

Nas têmporas de Hitô retumba o trovão que anuncia lancinante procela a curto por-vir.

Latejando anátemas enquanto guindava suas compras para fora do bondinho.

O crânio, num rompante, vira um fardo. A dor se derrama sobre cada músculo. Hitô sente o corpo inundar-se em lagoa de agonia.

Pulsou o que havia de impropérios léxico-comportamentais no seu vasto repertório opróbrio enquanto despedia o condutor; tão entretida que estava com seus próprios réprobos, sendo o olho de um furacão e carruagem da moléstia, que estirou pelo chão sua carga.

Em Hitô toda mágoa fez-se física, enlameando a alma, rebulindo o sangue, sobrecarregando os nervos.

Arroz feijão desaba em cataratas de alface, uma avalanche de lanches variados carpeteiam a via pública seguida por uma nevasca de farinha de trigo, sal e açúcar que pinta de um branco sem impurezas o cenário.

Um clarão ofusca a consciência por um átimo, barra a passagem do tempo por um tempo imensurável; e o mundo se faz silencioso, praticamente lindo, pateticamente cândido.

Ergue-se alta a mão de Dona Dô, brandindo a polpa escarlate do fruto proibido que ela mesma violara. O fruto e o punho de tal maneira proporcionais que se confundiam, sangrando suco.
Desce veloz o braço e o vermelho se alastra em enxantema, maculando o alvo, que era todo o resto.
O caqui se espatifa no chão como uma rosa nas mãos da Mona Lisa.

Finda-se o tempo em que o tempo parou de passar quando Hitô sente um aperto bem perto do peito, mas dentro; mais dentro. Um pontada gelada que rodopia e trás de volta ao dia, se é que era mesmo dia.
Diante das íris dos olhos tudo se refaz em cores e águas. Garoa, pessoas. E de repente ele sabe o que fazer.

Dona Dô, exaurida, de pé no umbigo do caos que criou, viu Hitô, cambaleante –ainda mais do que o costumeiro- pendulando até um balcão onde pediu:

-Zé!
Um tiro de cachaça e dois canos. Pra já!

Hitô talagou a pinga que pousou à sua frente e empunhou sem muita familiaridade a escopeta que lhe entregavam.
Pediu outra cachaça, conferiu a munição e começou a se mover, pingente, em direção ao meio da rua.

Antes, até, dos dois pares de olhos se cruzarem, ele já teria percebido certo e bem realizado quem que era aquela, que ali se conjurava. Era sua própria dor, que por acaso estava ali de bobeira manifesta. O diabo na rua, no meio do redemuinho. A Hitô bastava que, sem jogos nem trapaças, saraivasse a cara e o corpo ali presentes. Inaugurando com um par de rosas de chumbo o jardim de sua própria vida, dali prá adiante, vazia de toda dor que rói as almas, quem sabe até talvez eterno como uma árvore?

Bastava que apertasse o gatilho, e que não tivesse estado em casa, neste dia que não amanheceu; e seria para sempre liberto da dor.

A eterna dor de estar vivo...

“Ao Grão Grelutz, o homem que anda incerto pois não sabe que pisa certo”

terça-feira

O Estado mental de mentes

Um conto de lula, mo.luz.com

A rua estava quase deserta, congelada. Meu cigarro queimava sozinho na boca criando formas estranhas na penumbra, causada por um luminoso de motel que insistia em falhar numa rítmica sistemática, quase proposital. Olhava aquele posto de gasolina, o único recinto iluminado, um Select também aberto e dois funcionários: O gordão assistia a uma televisão portátil, resmungando risos para uma porcaria que mostrava sua própria decadência geométrica do potencial de sua existência. Vê-se logo que não era capaz de entender o que assistia; O outro parecia uma coruja, de olhos arregalados e assustados, olhava em volta, sua face branco-gelo e cabelos negros, grossas sobrancelhas, movimentação rápida e impulsiva, não dizia nada há horas. Babava em seu próprio manto xadrez, que cobria seu colo. Já há tempos tinha sacado minha movimentação. Acho que, apesar de não manifestar sequer gestos, conhecia a iminência de um acontecimento me incluindo, e entendeu que o gordão nada podia fazer a respeito. Chegou a hora...Saquei minha Garrucha, uma velha Colt militar calibre 45 de 1872 e andei calmamente em direção ao posto. Atirei a bituca no chão e com um tiro certeiro, na testa, acabei com a alegria do gordo. Olhei fixamente para o branquelo, não se moveu, a não ser seus olhos, fixos nos meus, que gritavam desesperadamente perdão por qualquer coisa que pudesse ter feito. Suava muito e tremia como se estivesse numa câmara de gás. Apontei minha arma para minha própria cabeça, devagar, e ele começou a soluçar. Puxei o gatilho. “-Bang”, murmurei perto de sua sebosa face que se fazia tremer cada vez mais, já sabendo que não existia o segundo tiro. Guardei o berro e com uma cara satisfeita dei meia volta: “-Vou tomar um trago”.
Fazia uns dias que eu andava mudado. Não sei exatamente o que me aconteceu depois do acidente, mas percebi que a mudança fora drástica. Acordei no hospital sentindo fortes odores, o branco do meu leito ofendia minhas retinas e os pensamentos das pessoas pareciam expostos. Algo como estar morto. Era tudo muito claro, fácil, eu sabia o que todos em volta pensavam. Tinha olhos de garça, radar de morcego, enxergava sentimentos e sensações, movimentação. Comprovei minha mudança com o acontecimento do posto. Tudo bem, exagerei, mas aquela sensação era indescritível a olhos comuns. Era capaz de dizer tudo sobre a vida daquele branquelo: Sua infância solitária, seu pai, geneticamente melhor construído não suportava a derrota que a vida lhe proporcionara, um filho tão bobo. Muito apegado à mãe, só trepou com putas e não manifestou sua homossexualidade por medo de tentar. Fingia não saber. Apesar da cara estudiosa, convenhamos, com seus 30 e poucos anos estava trabalhando de madrugada em um posto de merda no meio-subúrbio-meio-interior de Guaiamum, sul da Grande São Paulo, o que demonstrava que não era capaz de se relacionar. Panaca, na certa. O que acontece é que agora eu estava sozinho no mundo, admirando psicoses de camarote...

O moleque do trem........................................................................................................21:44

Depois de entrar num dos vagões do fundo, um dos mais vazios, sentei o mais longe possível dos outros elementos. Em minha volta, padres pedófilos, executivos vazios, alguns ratos e alguns burros. Eis que entrou um rapaz com uma mala do tipo esportiva, magro e aparentemente com uns 14 anos. Não sei porque me chamou a atenção, mas chamou. Tinha um boné com uns rabiscos, bermuda e camiseta de moleque ligeiro. E sentou próximo de mim, mas do outro lado do vagão, de costas para os pontos. Vi que suas mãos gesticulavam sozinhas e sempre olhava para a janela atrás dele. Seu boné tinha uma marca de suor na divisa com a cabeça e seus pés não estavam em uma posição natural, mas virados para dentro. Três pontos depois, levantou e começou a vender amendoins. Era prática proibida dentro dos trens, por isso tanta cautela? Deixava saquinhos magros no joelho das pessoas. É absolutamente instintivo de alguma forma a isso, e todos reagiram. Uns manifestaram certa raiva, alguns apenas mexeram o olho, um jovem estudante despertou de sua viagem de maconha, mas um deles não reagiu. O padre, o velho padre, aquele olhar não me enganou. Vi que seu pacote de amendoim estava com o lacre rompido e que o moleque logo ganhou seus cobres e saiu do trem apressado.

O padre...........................................................................................................................21:49

Padre muito mal disfarçado. Padres não costumam cruzar as pernas. A sola desgastada demonstrava que o padre corria ou andava muito, prática indelicada para um padre de igreja. Sua barriga denunciava que era um grande apreciador dos prazeres da gula; Aquilo não era pão e vinho. Seus olhos eram misteriosos, diferentes dos tranqüilos e seguros olhos dos verdadeiros oradores. Não tinha nenhum livro ou bíblia nas mãos, nem a aura envolvida em razão. Levantei-me e pedi um pouco de seu amendoim. O padre fingiu-se surdo, porque nem sequer reagiu. Saí na próxima estação. A porta fechou, e com o trem partindo com sua fraca aceleração, percebi o padre levantar e esboçar um sorriso sarcástico; Virei-me e deixei a estação Jurubatuba para uma caminhada.

A menina.........................................................................................................................22:32

É engraçado sair nas ruas de madrugada. Tenho a impressão que o planeta está dividido irmanamente entre as pessoas que querem viver de dia, que tem um caráter específico, e as que querem viver de noite, com outro. Eu vivo nos dois apesar de ser um grande apreciador do mundo noturno. O mistério me fascina, a desconfiança faz parte de minhas atitudes mais primárias. É engraçado, mas você é percebido à noite por todos. De dia por ninguém. Mas Jurubatuba é meio pesado. E andando por ali, entre os travestis raspando suas virílias com gilete enferrujada, os garotos com aparência anciã de tanto fumar pedra, os pixadores tentando conseguir um espaço no pódio da escória, policial tirando um troco extra como segurança particular de bacana, parei a admirar uma garota de aproximadamente 9 anos, loirinha de rabo-de-cavalo, mas com uma faceta introspectiva. Ela se dirigiu a mim e começou a draguejar palavras estranhas como em outra língua. Aquela maneira de falar logo me envolveu, embora ficasse quieto, aguardando um acontecimento interessante. Percebi que tinha uma boneca velha na mão, segura com muita força. Creio que fosse sua única amiga, senão a melhor. Tinha alguma coisa escondida na meia, na parte da canela, que fazia um desenho de alto-relevo indecifrável, mas dava pra imaginar; Seus cabelos estavam recentemente penteados, e como não tinha bolsa ou coisa do gênero, percebi que saíra de casa ou do lugar que vive a pouco tempo, ou seja, noturna; percebendo a movimentação constante das mãos e o manejo circular dos lábios, entendi. Puxei um cigarro, acendi e lhe dei. Continuei minha caminhada e ela, a dela.


A coroa............................................................................................................................00:15

Perto de casa tem um café vintequatro horas agradável, em sua maior parte da noite, por não ser freqüentado por gente a fim de conversar. Acho bom que leiam seus jornais, ouçam seus radinhos de pilha ou assistam a TV que não se ouve perto do balcão. Pedi um café, um cigarro e uma caixa de fósforos, 46 paus de troco. Não tinha fósforos, então pedi a uma senhora ao meu lado. Tinha sua beleza, aparentava uns 30 anos, mas dava pra ver que suas proporções genéticas foram alteradas por alguma nova tecnologia da indústria estética.Ela aproveitou-se dos fósforos, infelizmente, para puxar um papo: “-Muito bonita suas sandálias. Combina com seu porte atlético.” Mentira. Minhas sandálias eram uma merda e eu não tinha nada de atlético. Em pouco tempo pude compreender muita coisa. É engraçado como determinadas fragilidades expõem uma pessoa mais que atitudes virtuosas. Estas pessoas são mais fáceis de interpretar. Aquelas falsas adulações me faziam crer que ela procurava uma boa noite de sexo. Seu rosto esticado e bem bronzeado, cabelo alisado, tentava me enganar, mas ela deixou escapar um detalhe. As mãos. As mãos denunciavam seus 60 e um troco. A meia-calça escura deixava claro que suas indelicadas pernas já perderam a vitalidade. Sua gesticulação ao fumar, com uma longa piteira, mostrava uma pessoa de fino trato, daquelas antigas madames frustradas pelos cafetões, e velhos ricos e suas promessas; Sua vaidade era inversamente proporcional à sua condição financeira. Sua bolsa, pequena e preta, indicava que era uma mulher decidida: Andava apenas com o indispensável; Pelo jeito que ela me olhou ao falar aquelas besteiras, com o canto de seus enormes olhos bem delineados com a maquiagem, mostrou que vivia de sua própria esperteza e experiência. Ameacei um riso pra eu mesmo, dei um bom gole no café e manifestei a resposta, já meio tonto: “-Você tem idade pra ser minha vó.” E ela respondeu: “-Boa noite, meu netinho.”. Apaguei.

O Senhor.........................................................................................................................88:88

Era engraçado, mas acordei diante do meu maior desafio. Não conseguia decifrar a psicose daquele ser que estava diante de minha fuça. Seus movimentos eram feitos de uma espontaneidade inconfundível. Suas palavras pareciam não passar pelo estágio do pensamento. Não havia espaço nem tempo para espionar seu interior. Não sei sequer dizer se não estava sendo fortemente trabalhado, desta vez, como caça.
-Gostaria muito de saber onde foi parar meu faro.- Exclamei.
-Aqui não há espaço para faro.
-E por que me fareja?
-Está em meu território amigo. Eu faço as perguntas.
Comecei a me sentir sufocado.
-Crês que lê as personalidades. Já se olhou no espelho?
-Claro.
-E o que leu?
-Um leitor.
-Bom?
-Diria que acima da média.
-Eficiente?
-Com perspectivas maiores.
-Vou buscar um chá. Um momento.
Não tardou mais de alguns minutos. Seviu-me o chá.
-Falhas?
-Não acredito nisso.
-Valor pela vida?
-Algum.
-Utilidade para a sociedade?
-A sociedade não tem salvação.
-Humildade?
-A sociedade não tem salvação?
-Sinto muito, mas cometeste pecado injustificável ao perder a humildade. Sendo assim de nada lhe servem os duplos sentidos.
Apaguei.

A garçonete.....................................................................................................................07:32

Acordei de repente, cutucado com violência por um cabo de vassoura, a cabeça latejando e sem sentir o corpo direito.
-Acorda moço. Bebeu demais. Se meu patrão te vê assim, te tira daqui a tiros. Saí do café ofendido, jamais fora julgado daquela maneira. Estava envenenado, sem dignidade, estava cego, não ouvia direito, pouco sentia meu tato e minha boca estava adormecida. Estava sem grana e sem cigarro, com os bolsos e gavetas revirados. E mais uma vez, não lembrava de porra nenhuma.