terça-feira

O Levante Avilucionario

(Ou a trajetória simbólica da Pascoa no imaginario social contemporaneo)*

A Giserda, um dia tranqüila a ciscar, viu uma minhoca estendidinha no pé de uma goiabeira e já foi logo tirando um naco, pegou um teco do rabo dela com uma belisbicada rápida, e lembrou-se de Caroca, que há muito tempo tinha ensinado prá ela a diferença entre a frente e a culatra das minhocas, num daqueles dias cumpridos, mas que o tempo passava sem se fazer sentir, de um jeito que de repente cacarejava sua mãe, aflita por sua única descendente que não virou gemada, nem ovo frito, mexido, porchet, quente, omelete, fios de ovos, clarineve, cola de farinha, ungüento para queimadura a ferro ou fogo, presente de aniversário nem enfeite pascal de qualquer tipo, enfim, chamando a filha para baixo de sua asa.

A galinha Caroca era uma d’Angola que só aparecia na segunda metade do dia, quando ele começa a voltar a ser noite. Giserda já ouvira certa vez por uma rachadura no bico da Velha Caroca, que o dia se dividia em duas partes, na primeira o Reluzente Grande Grão Celeste sobe no telhado da sua granja pra tapar o furos que se abrem de noite, enquanto a chuva tenta entrar para alagar as camas das suas galinhas. tem dias que ele tá mais preguiçoso e quase nem vai trabalhar, ou faz o serviço sem vontade, e nesses dias agente não vê o brilho e nem sente o calor dele trabalhando e a chuva entra pelos buracos que a Gavião Noite fez, e molha tudo.
Na segunda parte dos dias ele desce do telhado, e isso quer dizer que é hora de voltar do trabalho também. Mas todo mundo sabe que tudo isso é bobagem, e que o Grande Grão na verdade se chama Sol e que ninguém precisa saber essas coisas de telhado, basta seguir o Sol sempre que ele sempre vai te trazer para casa. Mas de qualquer jeito, era nessa hora tonta, em que o Sol está no alto de seu telhado e que é quase impossível se achar a própria casa, a não ser belos brados estridentes da Dona Juelheta, era nesses momentos dos dias que a Galinha Caroca dava os bicos pelo terreiro, sempre ciscando devagar, fazendo muitos ruídos que ninguém entende, toda velha e magrela, mas botadera como ninguém e mais sabida das coisas do mundo do que todo mundo.
Era do costume da velha Caroca ajeitar sua cristazinha de gogó como se fosse uma exarpe e passar as tardes quieta, matutando e batendo seus próprios preguinhos, mas de quando em vez pegava alguma galinha por aí para ensinar uns bocados de coisas, passar recomendações e às vezes até alertar um caso perigoso de engorda ou baixa botação.
E foi numa tarde dessas que Giserda aprendeu mais do que tudo o que sabe. Além das peculiaridades anatômicas das minhocas, aprendeu sobre seu Compromisso Inter-espécies de Fecundidade, Planejamento de Ciclos do Cio, e tudo o mais da burocracia cânjica da Previdência Ornitóptera. Foi instruída nas artes femininas das galinhas, nos cuidados com o corpo, no tratar dos pintinhos e principalmente os detalhes da excelentíssima arte de chocar. Mas além desse conhecimento técnico ao qual todas as jovens galinhas são condicionadas, um laço mais forte embaraçou as penas das duas, Caroca e Giserda ,que passaram a passar mais tempo passeando juntas. Tempo em que Caroca passava, a maior parte do tempo, passando seus conhecimentos para Giserda, que muito pouco entendia mas muito muito escutava e apreendia o máximo que podia.

Agora, Giserda, se espantava por lembrar da velha d’Angola, porque também não costumava se lembrar de nada, só muito de vez em quando lhe brotava uma memória sem espora nem crista de coisas que ela já nem se lembra o quê. Mas ela sentia que algo estava mudando, talvez fosse aquilo a que chamam primeira choca, ela já estava mesmo na hora, quase no seu vigésimo semanário, quase completando sua tão esperada maturidade. Será que atingiria sua expectativa de bota? Cem ovos por um ciclo de vida tão breve parece uma coisa desgalinácea, tipicamente humana...
Enquanto chocava esses pensamentos, uma outra coisa chocou-se contra sua cara, e ela sentiu trincar-se a primeira rachadura no seu bico.

-SAI FORA, BIXO IDIOTA

Sentiu-se como se seu cérebro tivesse chocado,
os óio chacoalhado,
as oreia cacarejado
as idéias coalhado.
Crânio rachado
Crachado.


sSSAAAI

Sentiu mais susto que dor,
mas susto também dói um pouco
Suspirou, mas em surto e torpor
Num cargarejo rouco
Foi mas voltou
Pra se roer mais um pouco

Dum clarão que divide o antes e o depois ela reacordou, e só aí atinou que acabava de levar paulada de viola na ponta do bico, e só aí se desbaratinou e desatou a disparar na pauleira em volta da goiaberinha, e só aí é que desatou a correr na direção do Grão Celeste.

E o tampo enorme de violão passou assobiando pela sua cloaca enquanto Giserda fugia toda desparatada. Mas desparafusou o redemoinho das idéias e pôs-se a colocar tudo de volta no devido lugar dentro da cabeça logo que se viu longe do alcance das violadas.E avistou seu agressor, e se recompôs nas esporinhas, e encheu o bico prá retrucar a agressão como quem pede seis ou nove, sabendo que ouviria em troca um generoso:
cAI marreco

E cacarejou como deixando claro que ali não tinha três tento, que agora valia tudo, que fosse lento, mas longo, largo. Cacarejou como se anunciasse ao Último Dia. Disparou na direção do oponente lançando seu brado, e cada pena sua vibrou no seu cacarejo, porque agora cacarejava com muito mais suingue devido ao ferimento que rachou seu bico:
-Busli-bap, budabuda-sei!-

De repente irrompeu-se a fuga da galinha e ela se descobriu com um novo dom: agora podia cantar, não aquelas bostas que cantam os galos pra acordar o Grande Grão e pra cantar de galo. Dizem que o galo canta, mas poucas coisas se parecem menos com um cantar do que aquele ruído estrangulado que vem com o Sol que nasce a cada dia, a cada aniversário, sendo eternamente regurgitado e re-regurgitado, como que fosse hereditário (os Exu que me perdoem).
Sem saber muito bem o mais ou porquê, nem mesmo com que coragem que foi, Giserda, de contente e estasiada com si mesma e aquela alegria que ganhava asas no seu bico, voltou à goiabeira onde agora aquele sujeito que outrora afugentara ela se sentava, rabiscando acordes soltos na viola, e ela desfilou na sua frente mandando uma suingueira sentida só na capela, depois ponteando a harmonia solta das cordas com melismas de montanha russa e assim, sem nada falar, aquele homem de cara simples, camisa clara e pés pretos, os olhos muito mais claros, desculpou-se da Giserda em C maior, que empolgadíssima e nem se lembrando mais da ofensa trinou a introdução de uma nova melodia.
E assim foi, fez-se uma canção de bicho e de gente que ecoou no terreiro inteiro aquela tarde, e cada galinha que ouvisse os acordes daquele berreiro se agitava,primeiro cacarejava, bicava, cagava, cuspia, se depenava, depois atacava os galos, os gatos, os gansos, grasnava, quebrava os próprios ovos, quebrava os ovos das outras, ciscava no cimento e se debatiam num espetáculo esdrúxulo.





Nesse dia viu-se a coisa mais inacreditável que se conta pelas bandas de cá, por toda a região as galinhas em convulsão, e até alguns galos mais aviadados, logo se promoveram a galinhas em resolução e, todas juntas, todas fortes se tornaram galinhas em revolução. Deu-se o dramático episódio da Derocada da Avicultura.
O Movimento Avilucionário logo ganhou simpatizantes e adeptos entre os patos, marrecos, galinhas d’Angola, carijós e apoio da grande maioria da comunidade ovípara doméstica.
Apesar dos esforços humanizantes dos avicultores, que variavam da má fé à boa e velha ultra-violência, o Movimento resistiu, adquirindo o monopólio do mercado de ovos em todo o estado.
Porém, com a ascensão de algumas galinhas dentro do sistema econômico, logo as dissidências começaram a minar a força imponente da União Comercial Avilucionária, que dividiu-se em duas facções: A Frente do Bico Fendido, que defendia práticas de botação em massa por cotas anuais controladas pelos sindicatos e a Granja sem Canja e Aliados, que, tendo conquistado grande estabilidade no mercado de ações, defendia o neoliberalismo. Nos nichos de mercado gerados pela concorrência entre as duas facções da UCA, instalaram-se comunidades alternativas de galinhas carnívoras, vulgarmente chamadas de “vacas-loucas”.
Essas comunidades marginais, muito mal vistas pelo resto da sociedade avicultora, mantinham estreitas relações com morcegos e abutres que foram se consolidando pelo comércio e transporte de carnes e pelos interesses em comum entre essas espécies.
Novos tratados inter-espécies foram consolidados, a velha ordem mundial que mantinha as coisas em ordem agora não vazia valer mais nenhuma ordem, e foi ficando obsoleta frente aos avanços nos mais diversos campos da cultura, tecnologia e das artes que a UCA vinha patrocinando.
Neste fogo-cruzado das corporações Giserda foi esquecida num poleiro de quinta categoria do Projeto Granjapura recebendo uma pensão de merda pelo seu silêncio vitalício que mal dava pra sustentar seus vícios. Ela apostou no seu dom de cantora mas tudo que conseguiu foi algumas noites deprimentes em cabarés decadentes e outras ainda piores cortejando um ganso metido a flamingo com pretensões de produtor em ninhos de fibra sintética.
Adotou o nome não muito artístico de Gilda Lilda, e percorreu muitas granjas de baixo nível atrás do homem da goiabeira, de quem já nem bem se memorava das feições. Semanário atrás de semanário, ela se via cada vez mais parecida com um frango à passarinho. Abandonada por si mesma, cantou, cantou, até sentir dó de si, tomou um calmante, um excitante e ensaiou seu próprio fim afogada em uísque de milho.
Foi em uma dessas noites, penteando as últimas penas secas num camarim fedendo a cloaca, que desenhou em batom-de-bico, num espelho rachado, seu último repertório. Fazendo um esforço sobre-galináceo, repassou todos os segredos enterrados no fundo mais raso da cabeça, cada uma das nuances do doloroso processo da choca e trocou sua última gota de saber por uma dose fatal de alegria sintetizada. Em um devaneio alucinógeno deu cada detalhe da fabricação dos ovos a um coelho sem vergonha que se aproveitou da debilidade de Gilda. Profanou o segredo milenar que cada um dos ovíparos guardou a vida inteira, a tanto custo. Traiu sua espécie, família, gênero, número e grau por uma morte pacífica.
Mergulhada no caos das sensações Giserda passou a eternidade relembrando sua música no paraíso da galinhas, sem dever nada a ninguém, enquanto os coelhos tomavam o poder econômico com a produção, muito mais rápida e eficiente ( pois todos sabemos da fama dos coelhos no que diz respeito à produção e principalmente reprodução ), de ovos de chocolate.

Mais uma vez, a ordem das coisas foi totalmente reformulada, onde lia-se penas e bicos leu-se olhos vermelhos, orelhas compridas e pelo branquinho. Tudo caiu novamente no imutável ciclo das mutações constantes, reconfigurando-se a cada segundo. Em pouco tempo a aparentemente inexorável dominação econômica que os coelhos impuseram teve o mesmo destino de todos os impérios que o precederam e sucederam: sob os governos de Roger Rabbit e Pernalonga ruíram todos os pilares que sustentavam a lógica de mercado ovípara e novas regras vieram para restringir a realidade aos moldes aceitáveis.
Porém ainda hoje, resquícios destes tempos conturbados, em que vivíamos sob a constante censura dos ovos, regulam nossos costumes. Daí vem a expressão “quadrado” como característica condenável além do estranho costume de, neste período de Páscoa, consumirmos ovos de chocolate distribuídos por coelhos, por mais que isso soe totalmente imbecil.


Telônios, pela libertação da galinhas
(uma homenagem a Tito Duarte)

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