quinta-feira

Caminho de Santos

Antes era diferente. Prá dormir era um parto. Eu fritava nos lençóis horas a fio e só caia no sono depois de bem passado, por mais cansado que estivesse.
Antes eu trabalhava em escritório, esperdiçando suor salgado em um cotidiano insosso.
Só dormia e lavrava. Sono era leve, labor pesava.

Agora mudou...
Noutro dia, por exemplo, parece que nem deitei e já sonhava, quando o delega gritou: "RUA!"
Zonzo, fui me levantando, montei na Barra Forte e deixei a DP pedalando, suave.

Toda aquela confusão só por uns par de caipirinha, três maços de cigarro, chopps e porções. Era caso prá tanto barulho? Eu digo: "Não era!".
Era?

Se comi e não tinha prá pagar, é correto que me enquadrem no xadrez? Lugar onde menos poderia levantar algum com que pagar as pendências?
Certo seria, me deixassem ir, de bucho cheio e sem suor?
Isso é que não!
Mas então, qual seria a certa medida a se tomar? Se eu tomo e não pago, me nego?

Me pegaram. Me perguntaram.
Falei de cara limpa: "Fiz!".
Me carregaram. Encarceraram.

Em meia hora, lá estava eu, na rua de novo. E tanto barulho por nada!
Rotina: "Sofrer é profissão de vagabundo".

No fim das contas, ninguém pagou ninguém, comi, bebi e dormi no alheio.
Me saí mais inteiro no fim do expediente, barriga cheia e cabeça limpa.
Pergunta: "É direito?"

Já não penso. Hoje só durmo e descanso...

Telônios
trabalhar. (Do Latim vulgar *tripaliare, 'martirizar com o tripaliu (instrumento de tortura).
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
II edição, revista e ampliada. Editora Nova Fronteira.
Rio de Janeiro, 1986.

terça-feira

Sujeito de aspecto curioso: um par de suspensórios lhe conferia um ar de seriedade obsoleta, desmentida pelas pisadas que dava em degraus que só ele via. Sapatão de couro, outrora valeu ouro e agora punha água prá dentro e o deixava dedão prá fora. O resto era de acordo com os restos: amarrotos e sujados.
Espiava e sonhava, vendo a juventude exercer sua juventude na beira dum bar com música ao vivo. Ele, morto, do lado de lá da rua, nalguma calçada da República.

Escavocou no fundo do buraco das oreia. Catando piolhos entre os neurônios prá ver se algo parecido com caldo se extraía dessa mente sacana. O cidadão ali me olhando como quem diz: "Por que é que você não vai tomar no olho do seu cú?" Mas nada dizia... só olhava.

Dali há um tempo, aproximou-se e perguntou se eu queria comprar pó. Erva? Doce? Erva-doce?

Que estranha mania que as pessoas têm de me oferecer todo tipo de muamba proibida! Até chego a pensar que é só comigo, problema meu.
Nada! É com todos: quem não quer?

Mas será essa a questão? Talvez o direito fosse perguntar: Quem não tem?
Quem não tem, quer. Quem quer caça. Quer queira, quer não, um dia acha, pois esse é o destino inevitável dos que procuram.
Assim diz o ditado...

Quis me passar um comprimido: 50 paus.
Pechinchei: isso não tenho...
Amoleceu: 35 conto.
Mendiguei: 15 pilas.
Negócio fechado!

Ah! Ele queria que fosse! Voltei prá casa com meus quinze conto, ele tomou sua aspirina e foi dormir...
Assim diz o samba: Laranja madura na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé.

Eu creio. Sobrevivo.

quinta-feira

Fudido com "O" - Sétimo Fascículo

Aquela Vaca!

Saindo apresssada da toillete, embarassada pela sujeira que havia feito, senti o muco dos olhos que me acompanhavam escorrer pela coxa. Desatoxei a calcinha por pura crueldade e deixei aquele pardieiro, feliz em constatar a eficácia das minhas ferramentas.

Ao cruzar a grade de saída, o gorila da porta me passou um bilhetinho e um sorriso de cumplicidade como quem diz: "tô sabendo, mas essa vez passa...". Piso firme na calçada, me equilibrando nos saltos enquanto afasto o cabelo para ver se ouço o canto do realejo: nada.

Sozinha na calçada, sozinha na noite, sozinha na cidade, sozinha no mundo. Surge um letreiro e entram os créditos. A trilha sonora é alguma coisa entre o Genival Lacerda e o Stomp.

Algumas horas depois, o faxineiro do putero vai ao telefone aflito. Quando chega a polícia já é dia, e o sangue seco da loura do banheiro traz também as primeiras moscas da manhã.

Lá se foi Maria Lenk, ida de coração ao lado de lá, onde agora nada em nada, e tá bem mais à pampa...
Fica aí nossa homenagem...

quarta-feira

outra mínima

O TAO DO LESO

o coco tá oco
(tá osso)
penso, repenso: dispenso
(bagúio tá tenso)

segunda-feira

Fudido com "O" - Sexto Fascículo

Make Up: a espada mágica

A primeira reação àquele trinado, que se pronunciava por detrás das sujas paredes do banheiro feminino, foi fincar o pé no azulejo, como se aquilo fosse derrubar a casa.

Okay, não derrubei porra nenhuma e ainda descolei uma dorzinha incômoda no dedão do pé direito, que latejava em contraponto com o galo que cantava dentro do meu crânio, desde a hora que chifrei o teto. Aquilo compunha um terrível acompanhamento rítmico para a melodia do curupaco que eu andava perseguindo. E ele me maltratando...

Cansada de dar murro em ponta de faca. Que minha mãe não me criou prá ser prego, nem pra chupar prego, recobrei alguma dignidade raspada do fundo do tacho da alma.
Uma Lourona entrou no banheiro ajeitando a calcinha. Trouxe consigo o cheiro quente e misto das suas curvas. Trocamos palavrões amistosos e ela desapareceu numa cabine.

Fui ao espelho.

fssssssssssssssssssssss!!!

Os pelos da nunca se arrepiaram todos, no contato dos meus olhos com meus olhos e toda a fuligem entre um e outro.Fazia tempo...

Enquanto eu me perdia na minhas próprias feições, outrora mais delicadas, a loira ressurgiu. Me divertia tentando enxergar uma beleza esquecida por trás das tristeza todas e ela logo percebeu, me estendeu a mão com rímel, base e batom.

Retocamos juntas a maquiagem. Fazia tempo...

Acertei a altura dos soutien, ensaiei o sorriso. De novo. Sai me pensando linda. Fazia tempo...

terça-feira

Fudido com "O" - Quarto Fascículo

BUCÓLICO BUKOWSKI

No campo.

Um lindo campo de aragens mansas. O Sol doirando dulcemente os matizes, sutis-verdes, de um gramado macio, viçoso.

E até flores! Mil cores de pétalas ponteando o manto esmeralda. Umas brincando de pêndulo com a brisa. Outras, borboletas.

Uma coleira de couro jaz a meus pés. Mas não é minha.
Uma lebre saltita mato afora. Mas não é minha.
De algum lugar, sei do meu dever. Sei que devaneio, e vou atrás dela.

Quase alcançando... o verde desvanesce.


Na latrina.

Outrora verdes campos se refazem em gorfo úmido, vicioso. Fragrância fina da pústula. Por todos os lados, o que eram flores agora eram só caco orgânico e mosca. E eu.

Me levanto tentando espantar uma nuvem de percepção inventada que se formou ao redor da cabeça.

UI! A cabeça, o teto: mais dor.

Entre praguejares, uma melodia se assobia. Depois da parede, esperança.


(c'estnefinitepas, tá ligado?)
Telônios