terça-feira

Publiciverso V

Batia seu pilão
Morena-azul bela e triste;
recortada contra o mar-azul
sem fim

Batia no pilão a raspa
da última saca de farinha de milho
prá fazer boa cachupa.

Primeiro as crianças,
também então os mais véin
e até a cabrita.
A fome levou tudo.

Na praia pilava farinha,
na praia choravam sozinhas,
muita mucama bonita...

E socaram e socaram o pó
mesmo pó em que semearam,
até cada pilão e cada mulher
estar afundada na terra.

Pipocaram só
no meio dos desertos
fagulhas na farinha massetada: ouro puro!

Telônios

Publiciverso VI

Vó véia largou
a panela lá, na cozinha
e foi ouvindo:

O afã do fandango
próximo, logo ali...

Sua colher de pau
sobrinha predileta
de fogo de lenha

Amiga antiga
das panela todas

já nem se reconhecia
estalando batucada batendo
contra o ferro quente

Vó véia pegou
na panela lá, na cozinha
e foi batucando...

Telônios

Publiciverso II

Bate zabumba
Bate bumbo
Ganga zumba
tem saudade

Na melodia da museta
Nostalgia se escorre
mais um dia que se morre
prá noite ir até mais tarde

Bate um
Outra rebate
Batmacumba baticum
é no instante que se faz a arte"

Publiciverso I

Bate zabumba, bate moringa
o espírito tem sede
Ganga zumba e Rainha Jinga
nas carnes, tem vontades.

Na gorda garganta
da larga corneta
até o bode endireita os cornos
prá ouvir o que se passa

é o vento que sopra
vindo do pulmão
no momento exato
sussurra um trovão

o guincho não é de graça
faz muita parte:
e apito é bonito, até...
da chalaça brota arte

Telônios

Aparição

Conversar, não conversavam.
O corpo fala mais, pois fala no cheiro, no veludo e no movimento.

É claro, antes tem sempre um par de formalidades a cumprir:
"Boa noite"
"Boa noite"
"Dança?"
"Nome?"
"Calor?"

Calor!
Ela irradiava as beldades da forma e da essência, paradinha no fundo do salão de baile.
Ele batia suas notinhas sem parar, no jeito de um polvo-pavão, lutando prá arrancar qualquer ondulado daqueles quadris tão bem acabados. Um pezinho batendo, que fosse, marcando o contratempo...
Nada! Ela seguia irredutível.

Tiveram uma pausa. Ela se fez aparecida, ele chegou junto.
Perambularam procurando qualquer desculpa prá ser atracarem ali mesmo.

Não encontrando, ela tomou as rédeas e carregou o novo bibelô pro Paraíso.
O mundo se pintou de vermelho e bosta de coelho.

Se tornaram em ninho de cobra viva. No entrelaço de membros e braços, ele nem viu que ela lhe punha, com todo carinho, o laço no pescoço.
O laço era de contas amarelas, alinhadas num cordão fechado.

Ela foi se, de repente. Negou o convite:
"Não posso..."
E se sumiu no Sumaré.

A primeira coisa ele que sentiu ao acordar, sozinho, foi o aperto do cordão na garganta. Na garganta e no fundo do peito.

Nessa manhã começou sua procura.

Telônios

"Mamãe não quer, papai não deixa"

Não era a primeira, menos a segunda, vez que lhe enrolava.
"Te ligo", não ligava. "Te beijo", não beijava. "Te deixo", não deixava.
Desassossego tem forma?

Fez risoli, rondele e rocambole dele. Por conta disso, quem deixou foi ele, que se dizia, perguntando:
Quem cala não consente?
Se o som é a pergunta, não podia ser - a resposta - o silêncio?

Deixou de choramingos, deixou os compromisso e tirou a meia, que é prá melhor meter os pé na jaca.

"Fiz merda, que bom!" foi o que ele se disse, antecipando a manhã seguinte.
Se não me engano é o que ela diria também.
Se bem me lembro, mal me esqueço.

E fez, mas fez. Carência, vingança e cachaça, se combinadas tem mais peso. Na consciência.
Com o tempo, agente vai aprendendo a lidar com a culpa. Mas bem ali, no mais quente do beijo menos decente, a outra me aparece, de repente:
"..."
"Eu... hum, hã...
Tava ruim, mas depois melhorou, mas agora..."

Ela desferiu:
"Vai com os seus, que eu tô com os meus"

Ela foi.
Ele foi.

No dia seguinte, se falaram ao telefone. Suas vozes se acariciando feito lixa grossa.

Amanhã nos vemos. Amanhã saberemos.

sexta-feira

Todas são

Primeiro viu o lustre, muito familiar, de todas as manhãs.

Daí viu-se todo estatelado, ao lado de um monte de carne.
O monte respirava, e exibia a entradinha do cofre semi encoberta pelo lençol e pela calcinha, vestida do lado avesso.
As carnes cheiravam forte, o lençol mantinha uma certa humidade, de suor e secreções variadas.

Não tem jeito, agente não se dá o valor...
As primeiras memórias da noite anterior vem chegando, do mesmo jeito que vão descendo os passageiros do trem, numa estação qualquer.

Saiu pelas calçadas e passarelas da madrugada procurando sarna prá se coçar, ou pelo menos um cachorro prá matar a grito.
Solidão e bebida, poeira leve. Farinha pouca é bobagem...

Deu no que deu

Virou-se e fingiu que era pesadelo, mas não demorou, e o pesadelo chamou.

-AmooOOOoooOOOoooOOooOor... - pustulenta lânguida!
Passaram a manhã no range mola, até o estrado dar um estalo.

Despediram-se cordialmente e às vezes fingem que não se reconhecem no metrô.